No desempenho de sua função social, a polícia tem sido alvo frequentemente de atenção e de críticas.  Na maior parte delas, as análises são eivadas por uma polarização primária em que são apontados com uma nitidez ilusória os mocinhos e os bandidos em cada situação. Tal pretensão binária tem a aparência de assertividade, mas é característica do pensamento infantil. Crianças adoram histórias em que há heróis e há vilões, há bruxas e há fadas. Adultos também recorrem à simplicidade de pares de opostos como o bem e o mal, mas apenas para buscar uma orientação em cenários de valores mais complexos. Afinal, às vezes, o certo e o errado são vistos de mãos dadas: a vida não é um conto de fadas.

Quando a polícia é chamada legalmente a intervir, de alguma maneira a ordem jurídica está em crise. A desocupação de um espaço pressupõe, obviamente, uma ocupação ilegal. A repressão ao tráfico de drogas funda-se na legalidade de sua proibição.  Quando se atesta a falência da palavra, da argumentação racional, a força pode-se tornar o último recurso. Todos parecem estar de acordo com relação ao fato de que a violência é sempre indesejável, mas é preciso reconhecer que ela nem sempre é evitável. Se um tresloucado ameaçar a integridade física de cidadãos indefesos, a expectativa tácita dos envolvidos é a da ação da polícia no sentido de constrangê-lo.

O recurso à força física, salvo em casos patológicos, provoca uma sensação de desconforto nos envolvidos. Evitar a instalação da violência é mais importante do que apontar quem começou a ruptura da confiança na palavra. O diálogo e a argumentação alimentam-se da responsabilidade assumida e de uma absoluta sintonia entre as palavras e as ações. Rompida tal sintonia, é muito tênue a linha que separa os mocinhos dos bandidos.

Nos dois lados, há os que sucumbem à tentação de recorrer a meios ilegais tendo em vista um fim considerado glorioso, o que é uma permanente fonte de desvios. Mas mocinhos que gostam de bater são tão excepcionais e doentios quanto bandidos que gostam apanhar. No combate aos desvios, a lei deve ser igualmente rigorosa para todos os envolvidos. A confiança na polícia depende da realidade e da eficácia na punição dos abusos. Simetricamente, a descrença na instituição policial não pode ser cultivada: ela semeia milícias, o que faz mal à democracia.

Diante de uma ameaça à integridade pessoal, um compositor do século passado sugeriu, em uma de suas canções: “Chame o ladrão! Chame o ladrão! Chame o ladrão!” Tal ironia pode ser recurso interessante em regimes autoritários, mas é uma brincadeira sem graça nas democracias.

A menos que consideremos o terreno utópico da anarquia, é fundamental reconhecer a função social da polícia. No exercício do poder legitimamente constituído, é responsabilidade do governante recorrer à força para fazer cumprir as leis e manter a ordem pública. A polícia é o braço executor de tal função; desconsiderar seu uso pode ser crime de prevaricação. Todos são iguais perante a lei, e nenhum setor da sociedade pode se constituir em reduto imune à ação policial.

Leis que perdem a legitimidade precisam ser mudadas, o que exige articulação, argumentação e paciência. Enquanto não forem mudadas, seu cumprimento é a garantia da integridade de cada um. Diante de uma ameaça a tal integridade, sem pudores ou blandícia, chamemos a polícia.

*******  SP  12-12-2016

No comment

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *