Força, Poder, Autoridade

Na vida em sociedade, a ação sobre os outros, ou a coação, é frequentemente necessária. Existe a coação legítima, diretamente associada ao cumprimento das leis. A lei nos coage a todos, e gostamos disso. Na Educação, existe a coação associada ao exercício da heteronomia, como instrumento necessário para a passagem da anomia da criança à autonomia que se atinge com a maioridade. E existe a coação ilegítima, correspondente à coerção, ao exercício da força, que é sempre indesejável, embora nem sempre evitável.

Para substituir a Lei do Mais Forte, que prevalece no estado natural, um contrato social institui o Estado, que organiza a vida em sociedade. Nas relações sociais, reserva-se ao Estado o monopólio do uso da força. Tal deferência está diretamente associada à responsabilidade do Estado no estabelecimento de uma ordem pública que garanta proteção ao cidadão e que seja considerada justa. Naturalmente, estamos falando do Estado de Direito, legalmente constituído para o exercício do Poder. A estrutura do Poder deve ser tal que a coação que dele decorre seja consentida. A tripartição do Poder (Executivo, Legislativo, Judiciário) é apenas um dos requisitos básicos para tal consentimento. A fundamentação na Justiça é, sem dúvida, o mais importante de todos os requisitos. Já se disse que, sem tal fundamentação, não há distinção entre um Estado e um bando de ladrões.

O exercício do Poder é tarefa para uma Autoridade, que assume a responsabilidade pela ação sobre os outros. Além da Força disponível para o garantir o exercício do Poder e do consentimento associado ao fato de tal Poder ser legalmente constituído, a Autoridade necessita de legitimidade, o que está associado ao modo como ela chegou ao Poder. Em um Estado de Direito, existem normas legais que conduzem o processo de constituição dos governantes; se elas não existem, são violadas ou não parecem justas, a Autoridade é minada. Eleições não instituem uma Autoridade, mas apenas legitimam uma Autoridade potencial que já existia.

Completa-se, assim, a tríade: Força, Poder, Autoridade. Quando a Autoridade é minada e se torna ilegítima, ainda resta o Poder; quando as estruturas do Poder sofrem abalo, resta apenas a Força. Tal é o caminho percorrido em um movimento como a Revolução Francesa. O mero exercício da Força nunca pode aspirar a uma situação de estabilidade, sendo sempre transitório. Similarmente, a manutenção do Poder quando a Autoridade se esvaiu em geral dura pouco.

Legalidade, Legitimidade, Responsabilidade, Limites

O Estado pode ser sempre legal, mas nem sempre é legítimo. As Leis podem perder a legitimidade. A escravidão já foi considerada legal e sua legitimidade não estava em discussão; historicamente, deixou de ser considerada legítima e passou a ser ilegal. As Leis devem ser cumpridas ou mudadas. Para mudar uma lei, é necessária a existência na estrutura do Poder de instrumentos para isso; se eles não existem, precisam ser criados. Todo esse processo exige paciência. A impaciência é muito comum em todas as tiranias. Um tirano com uma boa ideia é um perigo, pois ele não tem paciência para construir o convencimento e busca a implementação arbitrariamente, o que constitui uma violência.

Uma exigência natural da Autoridade para o exercício do Poder é que seja legítima. A legitimidade decorre da legalidade dos processos de constituição, como as eleições livres nos regimes democráticos, mas também está associada à competência para exercer a função. As condições de legitimação da Autoridade não são simples, incluindo a capacidade para assumir as responsabilidades inerentes. Assumir responsabilidades é o dever da Autoridade. Quem não quer responder pelas ações dos outros não pode assumir qualquer tipo de Autoridade.

No meio acadêmico, é necessária uma reflexão profunda sobre as estruturas do Poder e sobre as normas legais que instituem as Autoridades, nos diversos níveis de organização da comunidade. Particularmente importante é o fato de que o regime democrático é absolutamente imprescindível para a organização social da Cidade, do Estado, do País, não fazendo sentido qualquer hesitação a respeito. Tal reconhecimento quanto ao funcionamento da sociedade como um todo não pode ser associado a subsistemas sociais menores, dotados de natureza especial. Na constituição do próprio governo, os ministros ou os secretários, por exemplo, são escolhidos, ou deveriam sê-lo, em razão de sua competência profissional na área de atuação correspondente. Subsistemas menores, como a família, por exemplo, não funcionam como uma democracia. As funções e as responsabilidades de pais e de filhos são de natureza essencialmente distintas. Não elegemos nossos pais. Dentro de um avião, também não elegemos o piloto entre os participantes do voo.

No caso da Universidade, também parece natural uma distinção entre as funções de alunos, funcionários ou professores na constituição da estrutura de poder. Afinal, trata-se também de um subsistema social com um grau de especificidade aparentemente indiscutível. A afirmação de que uma família, os ocupantes de um avião ou os participantes da vida acadêmica não constituem exatamente uma democracia em sentido próprio do termo não significa, naturalmente, que valores fundamentais como a civilidade e a tolerância possam ser subestimados. Nem pode ser esquecida uma premissa básica: em sentido humano, toda autoridade tem limites. Meu dentista tem autoridade para me recomendar certa maneira de escovar os dentes; por maior que seja a autoridade do Presidente da República, tal competência lhe escapa, ultrapassa os limites de sua autoridade.

O ponto fundamental é o fato de que a ideia de Autoridade está diretamente associada à ideia de responsabilidade, que deve se apoiar naturalmente na ideia de competência. Tal ideia, por sua vez, encontra-se inextricavelmente ligada a um cenário de valores: competência técnica não é sinônimo de competência. Existe um vínculo inextricável entre a competência em sentido técnico e o compromisso em sentido público na constituição da competência como conceito.

No caso específico da Universidade, a estrutura de Poder está associada a um Estatuto e a um Regimento; tais são os elementos do “contrato social” vigente. É possível que alguns artigos tenham sido corroídos pelo tempo e tenham perdido a legitimidade; se esse for o caso, é preciso articular-se para lutar pela transformação desejada. Condições essenciais para isso são, como já registramos, a não violência e a paciência. A Desobediência Civil pode ser um recurso nessa luta; o terrorismo, no entanto, jamais será aceitável.

 Violência e Palavra

 A explosão da violência corresponde à falência da palavra. Uma das tarefas mais fundamentais da Educação é justamente a construção da confiança na ação, que significa o fazer com consciência, ou a simbiose entre o fazer e a palavra. Tal seria a marca do modo de ser do ser humano; apenas da divindade não se espera tal articulação, mas apenas o exercício da palavra.

Nunca será demais o esforço desenvolvido em todas as áreas da atuação humana para se evitar a violência. O diálogo e a argumentação são recursos vitais para isso. É imprescindível a recusa de todas as narrativas que se pretendem unárias, ou histórias únicas, uma vez que elas se situam na origem de todo dogmatismo ou de todo fanatismo. Complementarmente, é igualmente essencial a recusa de narrativas binárias, que resumem todos os conflitos a uma luta do bem contra o mal, ou a situações em que quem não é meu amigo, é meu inimigo. Tais narrativas binárias são as matrizes para todos os extremismos. A vida não se deixa traduzir por pensamentos unários, nem por narrativas que equivalem a contos de fadas, com seus heróis e seus vilões, com suas bruxas e suas fadas. As narrativas vitais são multifárias e a busca de uma compreensão que possa traduzir em palavras uma fusão de horizontes é a meta precípua da solução de todos os conflitos.

Existe uma máxima latina, no entanto, que traduz uma verdade até certo ponto inesperada: Corruptio optimi péssima, ou “a corrupção do ótimo é o péssimo”. A corrupção de uma ideia ótima não torna sua realização um pouco menos boa, ela transmuta e contamina todo o processo e aquilo que seria ótimo transforma-se em péssimo. Uma constatação das mais cruéis nos dias atuais é o fato de que algumas das piores formas de violência ocorrem por meio da palavra. As agressões verbais, as situações de bullying são os exemplos mais simples de tal violência; a formatação da palavra e o formato dos contratos são manifestações mais sutis.

De fato, existem situações de fala em que os participantes do discurso têm diferentes graus de liberdade: a palavra é dada, mas é formatada, em função da caracterização dos participantes. A alguns pode ser permitida a presença sem a palavra; a outros, a palavra, mas não o voto; a outros ainda, o direito de votar, mas não o de vetar, existindo ainda aqueles a quem se concede o direito do voto e do veto. A ONU, por exemplo, é um colegiado que funciona de modo semelhante ao anteriormente descrito.

É nos contratos que regularmente assinamos, no entanto, que a forma sutil de violência verbal – uma violência virtual, mas uma verdadeira violência – ocorre de maneira absolutamente sistemática. Se a confiança na palavra era a garantia fundamental dos antigos, se era possível se fiar em um fio de bigode, hoje os contratos são especializados em nos afirmar com todas as variações, com todas as nuances, que não confiam em nossa palavra. O que poderia haver de mais violento?

Da antiguidade clássica até o final da Idade Média, o currículo para a formação do cidadão era o Trivium: a Gramática era justificada pela importância do falar corretamente; a Dialética, pela importância dos argumentos coerentes; a Retórica, pela necessidade de se escolher modos de falar e de argumentar que conduzissem ao convencimento. A importância da palavra, no conteúdo e na forma, era decisiva. Considerava-se, então, que maltratar a língua era tão desabonador quanto agredir outro falante. A situação atual é inteiramente diversa, apesar de alguns oásis de resistência, como na chamada Ética do Discurso.

O ponto crucial, no entanto, é o seguinte: a forma mais atual de violência se dá por meio dos preconceitos de diferentes estirpes. Explicitemos um pouco mais tal questão. No uso corrente da língua, o significado de uma palavra nasce da imensa diversidade de sentidos, que são pessoais, idiossincráticos. Como primeiro momento do conhecimento, a percepção se dá pelos órgãos dos sentidos: o que não é sentido, não faz sentido. O significado é o que há de partilhável na diversidade de sentidos, situando-se no nível da palavra. Buscamos a escola para construir o significado das palavras; tudo o que aprendemos deve ter significado. Aqui e ali, de maneira tópica, os significados tangenciam os conceitos, mas a aprendizagem escolar não se enraíza essencialmente no complexo terreno dos conceitos; nem toda palavra é portadora de conceito. Raríssimas vezes um conceito é coisa de criança. Uma criança tem ideias sobre tempo, sobre o ser humano, sobre a vida, mas não dispõe ainda de conceitos tão complexos quanto os correspondentes a tais palavras.

Um conceito, estritamente falando, é uma palavra que sintetiza uma definição rigorosa, uma classificação coerente, uma ordenação nas ideias e uma ideia de causalidade. Na escola básica, vivemos na antessala dos conceitos, na região das ideias preconceituais. Elas se situam no caminho da construção de conceitos, que, muitas vezes, somente estarão presentes bem mais adiante. Sem a relativa elasticidade das ideias preconceituais, não logramos trilhar tal caminho. Mas é preciso cautela com tais ideias. A pretensão ou a arrogância do tratamento intempestivo de ideias preconceituais como se fossem conceitos é a matriz básica de um preconceito. E os preconceitos constituem uma fonte permanente de violência da pior espécie. Ética e preconceito são como líquidos imiscíveis.

******SP 24-04-2017

 

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