Conhecer a origem das palavras, seu modo de formação, a evolução de seu significado é uma tarefa interessante, cheia de surpresas agradáveis, mas suscetível a cascas de banana traiçoeiras. “Desfazer” é o contrário de “fazer”, mas “desmatar” não é “dar vida”. “Distratar” é desfazer o que foi tratado, mas “distrair” não é voltar a ser fiel. “Cinéfilo” é um amante do cinema, mas “pedófilo” não é exatamente quem gosta de crianças… A Língua e a Matemática colaboram continuamente na construção do pensamento lógico, no desenvolvimento do senso crítico, mas a Língua nunca poderá se converter em pura lógica matemática, ou o sentido do humano se esvairia. A compreensão do significado das conjunções “e” e “ou” somente é simples e indiscutível em livros de lógica; na dimensão pragmática da língua, o uso de tais conectivos sempre gera dúvidas. Quando dizemos que “vamos ao cinema ou ao teatro”, dificilmente estamos considerando a possibilidade de ir ao cinema e ao teatro ao mesmo tempo, como pressupõe a norma lógica. Em latim, havia duas palavras para indicar o “ou”: “aut”, que era o “ou exclusivo”, “ou vou ao cinema, ou vou ao teatro”, e “vel”, que era o “ou inclusivo”, que admite as duas opções ao mesmo tempo. A Lógica Formal herdou o “ou” diretamente do “vel” latino, recorrendo inclusive ao “v” para representar uma conjunção como “a ou b” (a v b). Um caso interessante de desvio morfológico/semântico, que incomodava um mestre no uso da língua, como era Ortega y Gasset, é o que se refere ao par “zoo/bio”, palavras gregas que traduzem o significado da palavra “vida”. Como se sabe, “zoo” refere-se à vida em sua dimensão animal, à vida do corpo físico, enquanto “bio” refere-se à vida com a palavra, à vida em sentido político, juntamente com os outros, na “pólis”, que é a cidade grega. Para Ortega, a palavra “Zoologia” seria mais adequada para designar não somente seus referentes atuais, mas também a tudo o que usualmente chamamos de “Biologia”; a Política, a Sociologia, a Antropologia, a Psicologia seriam mais apropriadamente “Biologia”, em sentido morfológico/semântico, do que o que rotineiramente rotulamos de Biologia. Naturalmente, não se trata aqui de fomentar uma luta contra tais desvios formais, o que seria uma tarefa vã, como bem lembrou Drummond. No entanto, lutamos… por uma valorização da dimensão pragmática da língua, muito além do plano sintático/semântico. Afinal, uma expectativa de consenso, em qualquer nível em que as falas humanas se confrontam, exige um mínimo de exegese, ou corremos o risco de misturar acriticamente “habeas corpus” com “Corpus Christi”.
******SP 09-06-2017
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