Vivemos numa sociedade em que a informação circula cada vez mais rapidamente. Sites, blogs, redes sociais divulgam quase instantaneamente notícias reais ou fake news, postos continuamente em circulação. Resultados de jogos ou de eleições, previsões do tempo ou variações nas bolsas de valores são apresentados ao público em tempo real. Ninguém mais espera o jornal do dia seguinte para se informar sobre tais ocorrências. Ao mesmo tempo em que isto ocorre, as tiragens dos veículos da imprensa escrita diminuem no mundo inteiro e alguns analistas mais afoitos chegam até a anunciar o fim dos jornais. Tal expectativa, no entanto, deve ser recebida cum grano salis. Existe algo nos jornais que parece resistir. A jornada diária parece continuar a regular nossa vida humana muito mais do que os anos ou os segundos. O ritmo da circulação de informações na rede www não parece ser o ritmo da vida em sentido humano. Continuamos a nos orientar pelo dia como unidade de tempo e talvez o jornal represente, até etimologicamente, nossa referência básica na compreensão da sucessão de eventos. Variações decorrentes de atividades extraordinárias são frequentes e não produzem muito estranhamento, mas o dia e a noite continuam a nos pautar. É de Hegel (1730-1831) o aforismo que pode ser indiciário de tal fato: “A leitura diária do jornal é a oração matinal do homem moderno”. Desnecessário registro de que as religiões nada têm a ver com isso. O sentido da oração é o do encontro de cada um de nós consigo mesmo, o do momento em que nos constituímos como interlocutores de nós mesmos, em diálogos profundos e decisivos. Coexistindo com as redes informacionais, os jornais permanecem como um espaço que vai além das informações, que elabora as primeiras análises críticas, abrindo janelas de opções para a leitura do mundo. Gabriel Tarde (1843-1904, A opinião e as massas) já nos alertara para o fato de que a divisão da sociedade em públicos tenderia não a substituir as divisões religiosas, políticas, econômicas, mas sim a se superpor a todas essas de modo cada vez mais visível. A ideia de público é muito mais fecunda do que a de multidões, que seduziu autores tão controversos como Gustave Le Bon, em sua Psicologia das Multidões (1895). O próprio Freud (1856-1939), em seu Psicologia das multidões e análise do eu, cita inúmeras vezes Le Bon, mesmo sem concordar inteiramente com ele. Do ponto de vista do fazer com a palavra, do recorrer-se à palavra para combater a violência, do trabalhar para que a palavra não se constitua como instrumento da violência, os públicos são muito mais interessantes do que as multidões por uma razão muito simples: o exercício da força pode ser inevitável no enfrentamento de multidões, mas ao tratar com o público, é fundamental a formação da opinião, o confronto de opiniões, e é aí que se encaixa perfeitamente o papel do jornal nos dias de hoje. Segundo Tarde, os jornais contribuem para construir um espaço para constituir um saudável confronto de opiniões, tanto entre leitores quanto entre não leitores, uma vez que influenciam indiretamente as temáticas das conversações ocorridas em outros espaços. Naturalmente, estamos nos referindo ao jornal como um espaço público, disponibilizado pelos seus legítimos proprietários tendo por base a importância da conversação e do debate de ideias para a construção da consciência crítica, imprescindível ao exercício da cidadania em regimes democráticos. Uma frase lapidar de Victor Hugo, genial autor de Os miseráveis, parece explicitar a relevância e o caráter de um jornal: “O diâmetro da imprensa é o diâmetro da civilização”. Como órgão diário fundamental da imprensa, as funções de um jornal assim concebido aproximam-se de modo tangencial mas substantivo da mais importante função da Educação, que é a formação da consciência crítica. Não se chega a tal destino senão por meio de um confronto de opiniões, nos mais variados espaços, entre os mais diversos públicos: eis aí o que mais se requer de um jornal.
******SP 18-06-2017
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