Em interessante matéria publicada em jornal (OESP, 13-08-2017), o biólogo Fernando Reinach explora de modo instigante o fato de a ciência estar avançando no sentido de transformar racionalmente ração vegetal em carne, desde a produção do frango até a de hambúrguer de soja, ou ainda, o incremento transgênico da produção do filé de salmão. Há pouco, em outro veículo da imprensa, (FSP, 14-04-2017), o aparente milagre da produção do perfume da orquídea a partir de leveduras que se alimentam de lixo também foi saudado em prosa e verso. Criar o animal para o abate já causa certo estranhamento em certa parcela da sociedade, composta pelos vegetarianos ou veganos; basear o tempo de vida de cada um deles em sua taxa de conversão na transformação de ração em carne é dar um passo à frente em tal estranhamento. A taxa de conversão é a razão entre a massa de ração utilizada em cada animal e os quilos de carne produzidos. Nos frangos, a taxa de conversão é 1,8, ou seja, gasta-se 1,8 kg de ração para produzir 1 kg de carne; a taxa é igual a 4 para os porcos, e, para desapontamento dos produtores, próxima de 7 para as vacas. Nossos avós escolhiam um frango no quintal e procediam como num ritual – que tinha, certamente, algo de macabro – para a morte por meio do corte no pescoço, a extração do sangue para a cabidela, ou a preparação da galinhada. Hoje, a vida de um frango para o abate dura exatos 39 dias, tempo após o qual a taxa de conversão do frango começa a aumentar, o que não se pode admitir. Uma mensagem que parece decorrer de experiências como as citadas é a de que a objetividade da ciência estaria conduzindo a certa desvalorização dos meios, a uma centralização absoluta das atenções nos fins dos processos. Abaixo os rituais, abaixo os simbolismos, delete-se tudo o que parece supérfluo. O progresso nos processos faz tudo parecer inteiramente natural, dentro da lógica da otimização dos retornos, mas pode haver algo de assustador em tudo isso. O perfume sintético das orquídeas, o filé de soja e outros neo quitutes podem conduzir a extremos de intolerância, em que não tenhamos paciência nem mais pelos meios: vamos direto à origem, à fonte. A vaca transforma magistralmente capim em leite: tecnicamente, podemos produzir um atalho científico e passar a comer diretamente o capim. Não custa lembrar que uma roseira extrai do estrume que a alimenta o perfume de suas rosas… No livro Viagens de Gulliver, Jonathan Swift põe na boca do narrador, na visita à Academia de Lagados, algo relacionado à temática que examinamos. A Academia seria o local em que se produz ciência nos micro mundos imaginados pelo autor. Em tal visita, o narrador descreve a maior das pesquisas realizadas em Lagados, que seria justamente a da transformação reversa do excremento em alimento, o que constituiria um progresso fabuloso na economia da alimentação. Ironicamente, afirma que os resultados já estariam bem avançados, mas que um problema concreto estaria afligindo os cientistas envolvidos: o odor dos laboratórios não seria agradável. Quando são examinados com uma lupa, os processos econômicos associados à produção de medicamentos também não cheiram bem, Os princípios éticos que parecem guiar a indústria farmacêutica não parecem diferir muito da busca exclusiva pela maximização dos lucros. A alegoria de Swift parece perfeita e certamente nos faz parar para pensar, mas o problema fundamental de pesquisas como as inicialmente descritas neste texto é o da desvalorização dos meios nos processos vitais que nos mobilizam. Vivemos o tempo presente, que é uma duração, uma durée, segundo Bergson; a longo prazo, todos estaremos mortos. A vida mesmo, a vida vívida e vivida de modo pleno, vale pela caminhada, pelos processos de aprendizagem que ocorrem ao longo da viagem. A vida não se resume à partida ou à chegada: a vida é durante.
*******SP 13-08-2017
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