Em toda comemoração existe certa redundância, é como querer manter na memória o que já está vivo, ou não estaríamos comemorando. O sentido positivo da comemoração é o de se manter na memória junto com os outros (co + memorar) algo que consideramos valioso, precioso no sentido de que não tem preço, algo pelo que temos apreço. O sentido próprio da comemoração é o de sublinhar, destacar para não permitir que esqueçamos, pôr em highlight para favorecer a percepção, manter viva a memória, evitando o esquecimento e a morte do que se cultiva. Não podemos memorizar tudo o que vivenciamos, assim como não podemos considerar valiosas simultaneamente todas as percepções e todas as ações possíveis. Funes, o memorioso é um belo e incisivo conto do mestre Jorge Luís Borges, em que o protagonista (Funes) perde a capacidade de esquecer, memoriza tudo a que assiste, e termina literalmente soterrado, entupido, esgotado. A impossibilidade de filtrar as memórias conduz à incapacidade de pensar, de se tornar consciente, de agir. É fundamental e decisiva para o modo de ser do ser humano a contínua seleção do que deve ser mantido na memória e do que precisa ser descartado, do que precisa ser cultivado e do que deve ser combatido. É condição sine qua non de uma vida eticamente sustentável a consciência possível na distinção entre o que é importante conservar e o que precisa ser transformado ou esquecido. Tal temática tem importância amplificada em duas interfaces que se comunicam: a dos valores e a do perdão. Especialmente no terreno dos valores, o sentido pleno da comemoração se revela: os rituais representam momentos de explicitação e consolidação dos valores que nos unem. Quem nada considera valioso, não tem motivos para comemorações. Em sentido humano, no entanto, não vivemos sem comemorações, ainda que simplificadas, esvaziadas de significados, ou mesmo, corrompidas pelos axiomas do mercado. Na universidade, por exemplo, se não comemoramos efetivamente, sinceramente, a Semana Santa ou a Semana da Pátria, então simulacros de comemorações, como a Semana do Saco Cheio ou outras menos incivilizadas ocupam o espaço das comemorações, que nunca permanece vazio. No caso específico do perdão, que, etimologicamente, significa “a mais perfeita das doações”, Paul Ricoeur nos ensina que tal ação não representa um apagar da memória, ou mero esquecimento. Perdoar significa uma sincera reescrita da história, uma fusão de horizontes, uma consideração efetiva dos registros e das razões em múltiplas perspectivas. Comemorar apenas para eliminar qualquer possibilidade de perdão não se distingue fundamentalmente da sublimação de uma vingança.
*******SP 2-11-2017
No comment