Introdução
As reações à presença das tecnologias na escola têm oscilado entre um entusiasmo exacerbado e uma recusa sistemática, entre um fascínio ingênuo e um fastio descabido. Já vai muito longe, no entanto, o tempo em que usar ou não usar tecnologias era uma questão a ser considerada. Hoje, com presença cada vez mais disseminada na sociedade, as tecnologias têm presença natural nas salas de aulas. É cada vez mais é cada vez mais insólito, mais próximo de uma anomalia, buscar a construção do conhecimento sem recorrer adequadamente às tecnologias disponíveis. A discussão pertinente diz respeito, no entanto, ao modo como utilizá-las.
Um fato fundamental precisa ser destacado: a presença de tais meios tecnológicos não deve alterar minimamente os fins e os fundamentos da educação escolar. Particularmente no que tange às relações entre professores e alunos, a presença da tecnologia pode alterar até certo ponto a forma, mas nada que diga respeito às características de interpessoalidade que são a marca de tais relações. O interesse, as formas de valoração e, sobretudo, o ritmo das pessoas devem permanecer, sem dúvida, no centro das atenções.
Argumentar no sentido de fundamentar tais afirmações é o objetivo principal do presente texto.
Técnicas, Tecnologias
Na pré-história da tecnologia, há a técnica, que é um fazer sistemático, ainda que carente de um logos, ou de uma fundamentação teórica. A técnica é um fenômeno humano por excelência. O animal adapta-se ao meio, vive em busca da satisfação de suas necessidades, mas, como bem registrou Ortega y Gasset em Meditação da Técnica (1939), o ser humano adapta o meio a seu modo de vida, cria necessidades artificiais, vive de supérfluos. O uso sistemático de ferramentas encontra-se na origem de um fazer técnico que é o modo humano de promover tal adaptação.
Quando os antropólogos examinam materiais arqueológicos, dois são os principais indícios da presença de seres humanos: vestígios de uma linguagem escrita e indicadores do uso de ferramentas, ou de algum repertório de técnicas para a realização das tarefas. Alguma cautela, no entanto, é necessária, uma vez que todos os animais desenvolvem algum tipo de linguagem, e são numerosos os exemplos, entre animais, de situações que indicariam algo similar à construção, ainda que acidental, de objetos como meios para facilitar a ação. Ainda que a linguagem e a técnica tenham características especiais entre os seres humanos, em alguma medida partilhamos com os animais a utilização de tais recursos.
Um fato notável é o modo como os seres humanos constituem a linguagem, associando indissoluvelmente o fazer com a palavra na constituição de suas ações. Se os deuses se constituem a partir da palavra, e os animais pelo fazer inconsciente, expressão imediata de sua vontade, é próprio da ação humana a articulação entre a reflexão e o fazer prático, o que caracteriza uma volição de segundo nível, uma vontade de ter certas vontades e não outras, que é o cerne da ideia de consciência.
É justamente essa reflexividade, essa capacidade de voltar-se para si mesmo em busca da compreensão das razões da ação, que conduz à constituição do traço fundamental da linguagem e da técnica humanas. Ultrapassamos a dimensão meramente animal quando usamos a linguagem para falar da linguagem, ou seja, construímos metalinguagens; analogamente, construímos ferramentas para produzir ferramentas, ou seja, metaferramentas, que são, em última instância, as máquinas. Para atingir tal nível de desenvolvimento, o fazer prático, a técnica (techné) associa-se ao logos, à palavra, ou ao conhecimento, constituindo o logos da técnica, ou a tecnologia.
Ainda que, atualmente, a ideia de tecnologia seja associada imediatamente ao fenômeno da técnica, como construção humana a tecnologia é relativamente recente. A nitidez com que separavam a ciência do fazer prático fez com que os gregos não vislumbrassem a necessidade de tal palavra. É apenas em meados do século XVIII, com a Revolução Industrial, que a ideia de um conhecimento sistematizado sobre as técnicas ganha corpo, dando origem a uma noção teórica próxima do atual significado da tecnologia.
A partir daí, no entanto, a tecnologia teve um desenvolvimento notável, associando-se decisivamente ao conhecimento científico, a tal ponto que se considera, em certas esferas do universo acadêmico, a ciência como essencialmente produtora de novas tecnologias.
Tecnologias informáticas
Com a criação dos computadores eletrônicos, a partir de meados do século XX, um notável desenvolvimento das tecnologias informáticas ocorreu. E se a tecnologia já ocupara o lugar da técnica como expressão do conhecimento sobre o fazer humanos, as tecnologias informáticas provocaram um deslocamento semântico semelhante: hoje, falar sobre tecnologias é, praticamente, falar sobre as tecnologias informáticas e seus desdobramentos.
Em As tecnologias da inteligência (1993), Lévy caracteriza a oralidade, a escrita e a informática como ferramentas que surgem sucessivamente e se superpõem na constituição do modo de fazer humano. Naturalmente, cada uma de tais tecnologias corresponde a um modo próprio de registro e de memorização, conduzindo a transformações nos modos de atuação, nos padrões de associação de ideias e de constituição de valores. A escrita, por exemplo, dispensa a oralidade da responsabilidade pela contínua repetição das histórias dos mais velhos, para a preservação dos valores. Em contrapartida, cria a necessidade da interpretação do texto escrito, ou seja, da hermenêutica. Se a memória dos computadores pode dispensar a impressão escrita dos arquivos, por outro lado, instala definitivamente a problemática da localização daquilo que se produziu.
Prosseguindo nessa trilha, seria o caso de se investigar, portanto, o modo como a presença das tecnologias informáticas influencia a atuação do professor, particularmente no que tange às relações com seus alunos. Para isso, uma comparação entre as fases de desenvolvimento das técnicas em sentido amplo e o atual estágio das tecnologias pode ser interessante.
Técnica: três fases
Ao analisar o fenômeno da técnica, Ortega y Gasset (1939) caracteriza três fases em seu desenvolvimento. Na primeira, a técnica é fortuita, incorporada tacitamente à prática de todos. Cada um é capaz de produzir suas protoferramentas, de fabricar sua vestimenta ou seu calçado. A técnica apenas qualifica um modo natural de agir. Inexistem sua substantivação e o descolamento da função do técnico. Na segunda fase, conveniências de ordem prática passam paulatinamente a caracterizar o artesão, ou o técnico, aquele que é encarregado de realizar tarefas específicas, tornando-se um fazedor de calçados, por exemplo. Apenas na terceira fase, no entanto, ocorre um descolamento da própria técnica, que passa a ser utilizada na produção de ferramentas utilizadas na construção de ferramentas, as máquinas, por exemplo.
Nessa fase de objetivação da técnica corre-se o risco, na perspectiva de Ortega, de uma separação rígida entre o técnico, que sabe operar as máquinas, e o cidadão comum, que desfruta de modo relativamente inconsciente dos produtos da mesma, bem como da nítida distinção entre os que têm conhecimento suficiente para serem fabricantes de máquinas e aqueles que sabem apenas o suficiente para operá-las, os operários.
É nessa terceira fase que se desenvolve o logos da técnica, ou que instala decisivamente a tecnologia. Tal fato pode ser associado a outro absolutamente notável, especialmente visível a partir do desenvolvimento dos computadores eletrônicos: o conhecimento tornou-se o principal fator de produção. Em consequência, as tecnologias em geral, e particularmente as informáticas, passaram a ocupar um espaço de amplitude e importância crescente, sendo praticamente onipresentes na vida social.
Tecnologias: retorno à primeira ou uma quarta fase?
A plena disseminação – todos usam, de alguma forma, as tecnologias – pode significar um retorno à primeira fase da técnica de que falou Ortega, em que não é possível separar técnicos e não técnicos. Mas há algo de novo nessa onipresença das tecnologias, que decorre dos riscos mencionados anteriormente. Se, na primeira fase, a substância da vida era o ser humano, e a técnica apenas adjetivava alguns dos fazeres humanos, a atual substantivação da técnica desloca o centro das atenções do ser humano para questões específicas do fazer técnico, como se o modo de ser do ser humano passasse a ser tributário de tais questões.
Algumas palavras para ilustrar o que afirmamos. Consideremos, por exemplo, a questão da rapidez. As tecnologias tornam todas as tarefas mais ágeis, fazendo-nos, supostamente, economizar tempo. Cada nova versão de um aparato tecnológico aposenta a anterior, insinuando tacitamente a mensagem: “o novo é melhor que o velho, o novo é mais rápido que o velho”. Ocorre que o ritmo da vida não pode ser ditado pela rapidez dos chips. Se o coração começar a bater cada vez mais rapidamente, não podemos ficar felizes, achando que estamos tendo um upgrade: temos que procurar um médico.
Algo similar ocorre quando com relação às facilidades de simulação que as tecnologias oferecem. Há algumas décadas, um estudante de engenharia ou arquitetura levava semanas para elaborar a representação de um projeto, em pranchetas e com papéis especiais. Atualmente, com softwares adequados, tal trabalho tornou-se muito simples, e diversas simulações com parâmetros variados são realizadas em poucos minutos. Tal fato, no entanto, não pode deslizar para o terreno pantanoso em que o parecer ocupa o lugar do ser: o entusiasmo com simulações da realidade tem provocado, em alguns casos, uma fuga da realidade para o terreno dos simulacros. No que tange às relações interpessoais tais ocorrências podem transformar-se em meras patologias.
Um antídoto para desvios como o elogio acrítico da rapidez ou a substituição do ser pelo parecer é a consciência de que as tecnologias são da ordem dos meios, e não alteram as motivações fundamentais da ação humana.
A plena disseminação das tecnologias na sociedade pode distinguir-se da primeira das fases da técnica de que falou Ortega, constituindo, supostamente, uma quarta fase das técnicas; para tanto, é preciso aliar a tal disseminação do uso uma consciência clara de que o ser humano deve situar-se no centro das atenções, especialmente no que se refere aos valores. É crucial destacar, por exemplo, as diferenças entre as sistemáticas de memorização de computadores e de seres humanos. Nos equipamentos, os registros são acumulados cronologicamente e administrados logicamente, ocupando um espaço que é proporcional a seu volume. As pessoas, no entanto, têm memória seletiva, guardam aquilo que as tocam, que lhes faz sentido, e o fazem em sintonia com peculiaridades do contexto, que pode reforçar ou enfraquecer as relações constitutivas. Tal fato é absolutamente crucial quando se pensa nas relações interpessoais na escola, ou na caracterização dos papéis de professores e alunos em ambientes impregnados de tecnologias.
Dimensões da ação docente: possibilidades das tecnologias
A despeito de sua enorme importância, a presença das tecnologias na escola não desloca seu centro de gravidade, que certamente deve situar-se nas relações pessoais entre professores e alunos. Ontem, hoje e sempre, recorrendo ou não às tecnologias, no desempenho de suas funções, o professor é um mediador de conflitos de interesse, um tecelão de significações, um cartógrafo de relevâncias, um narrador fabuloso. Algumas palavras a respeito de tais dimensões da ação docente podem ser suficientes para revelar a importância e os limites do recurso às tecnologias nas atividades escolares.
A tarefa inicial do professor, em qualquer circunstância, é a de aproximar os interesses dos alunos daqueles expressos pela escola, em seus currículos e programas disciplinares. Sem tal mediação, a mais bem planejada das aulas pode ser solenemente ignorada pelos alunos. Não se trata de oferecer aos alunos apenas o que já é de seu interesse: é preciso interessá-los pelo que, às vezes, nem imaginam que existe. A arte, a cultura, a ciência em geral, o mundo do trabalho, as novidades da tecnologia podem servir de pretexto para a apresentação de conteúdos disciplinares que, de início, poderiam parecer insípidos.
Para despertar o interesse, é preciso construir o significado do que se ensina, o que somente ocorre quando relacionamos o novo com aquilo que já é conhecido. No exercício de suas funções, o professor busca estabelecer o tempo todo conexões entre os diversos temas, tecendo relações, sobretudo entre temáticas escolares e extraescolares.
Ao construir tais conexões, no entanto, temas muito importantes podem ser associados a outros inexpressivos, apenas por questões perfunctórias ou de contiguidade. Tal fato torna absolutamente necessário um mapeamento do que é relevante e do que não o é, tendo em vista os objetivos perseguidos. Na seleção dos conteúdos, o professor atua como uma espécie de cartógrafo, distinguindo o fundamental do que é periférico, e construindo mapas numa escala adequada para instrumentar as ações.
Uma quarta ação típica do fazer docente é a construção de narrativas envolvendo valores. Se os mapas são um convite à viagem, as narrativas são os roteiros das viagens a serem efetivamente realizadas. Assim como um “caipira” aprecia “causos” a serem contados, ou um administrador experiente dispõe de um arquivo de “cases”, para fixar conceitos e posições, um professor competente explora um repertório de histórias significativas, de natureza fabulosa, uma vez que sempre envolvem valores.
Nas quatro vertentes acima mencionadas, o papel das tecnologias como catalisadoras ou amplificadoras da eficácia das ações docentes é facilmente perceptível. O interesse quase natural dos alunos pode ser fomentado pela exploração de artefatos tecnológicos como aparelhos celulares, localizadores de posição (GPS), câmeras fotográficas, entre outros. Ao mesmo tempo, quase todas ações realizadas na rede mundial (WWW) podem ser associadas a sistemas de mapeamento de relevâncias. Quem busca por informações aprende na própria pele a necessidade de aprender a descartar irrelevâncias e se ater ao fundamental, sob pena de ser soterrado por avalanches de referências inexpressivas. E não se passa um só dia sem que tenhamos notícias da circulação de histórias fantásticas, especialmente na forma de vídeos, disponíveis para todos. É certo que precisamos aprender a discernir o joio do trigo, mas atarefa de mapear e filtrar irrelevâncias é amplamente preferível à indisponibilidade dos dados e das informações.
A despeito de tudo isso, as tecnologias são – e permanecerão sendo sempre – da ordem dos meios, pouco tendo a nos oferecer relativamente à prefiguração dos fins da educação. É ingênuo o entusiasmo de alguns responsáveis por políticas públicas com projetos que multiplicam desnecessariamente o número de computadores nas escolas, ou que prometem tablets para todos, como se tais iniciativas pudessem garantir um melhor desempenho de professores e alunos no processo educacional. A melhoria das condições de trabalho na escola pode perfeitamente passar ao largo de tais iniciativas. Carecemos no país de um projeto educacional que articule iniciativas tópicas florescentes, aqui e ali. Precisamos de metas mais explícitas e ambiciosas, que ultrapassem uma pequena porcentagem de melhoria em algum indicador específico e busquem uma mudança na inflexão em nosso caminho para uma educação de qualidade.
De modo geral, entre nós, as preocupações com os meios têm sobrepujado amplamente as delimitações dos fins da educação. As tecnologias são somente um exemplo de tal inversão.
****** SP/08/12/2017
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