Sumário

– Culta ignorância

– Douta ignorância

– Quanto mais aprendo, mais ignoro

– Significado: do binário ao multifário

– Epistemologia chinesa

– Conhecimento geométrico

– Geometria: Tetraedro epistemológico

– Significado: feixes binários

– Normas: duas fontes e um desvio

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Culta ignorância

Scientia quer dizer conhecimento, mas a redução do conhecimento à vertente científica é fenômeno recente, em termos de séculos. Certamente trata-se de um desvio; a leitura do capítulo A arte é conhecimento, no seminal Reflexões sobre a arte, de Alfredo Bosi, bastaria para ilustrar tal fato.

A superestimação do conhecimento científico tem alimentado certas reações acríticas, que atingem o paroxismo da negação do valor da ciência. Um voluntarismo ingênuo subestima a importância da dedicação aos estudos e transmuta em sábios sabidinhos que se orgulham de seu parco conhecimento. Abre-se aí fresta perigosa para uma inversão de valores: o louvor à esperteza e o cultivo da ignorância.

O conhecimento escolar, do básico ao acadêmico, os diplomas e as certificações não constituem a única via para a sabedoria. Em nenhuma via, no entanto, há lugar para os que desprezam os esforços para o estudo e o contínuo aperfeiçoamento pessoal. A ignorância culta – ou cultivada – deveria ser um crime hediondo.

Douta ignorância

Ainda que o saber seja sempre melhor que o não saber, existe um não saber valioso naquele que sabe que não sabe. Não saber e não saber que não se sabe é ignorância mesmo, pura e simples. Somente a consciência da ignorância pode torná-la valiosa: eis o recado fundamental de Nicolau de Cusa, em sua obra clássica “A Douta Ignorância” (1440).

Uma fronteira sutil separa o que sabemos daquilo que não sabemos: sua extensão cresce simultaneamente com o “volume” daquilo que se conhece. Uma pergunta fecunda adequadamente respondida remete-nos a muitas outras.

Quando jovens, enfrentamos de peito aberto certas situações delicadas, ignorando os perigos inerentes; na maturidade, ocorrências análogas passam a nos encher de medo. A inocência e a ignorância são como irmãs siamesas.

Quem quase nada sabe, quase nada ignora, pelo menos conscientemente; por outro lado, quanto mais conhecemos, mais aumenta a extensão da fronteira com o desconhecido, aumentando com ela a consciência de nossa douta ignorância.      

Quanto mais aprendo, mais ignoro

Vamos imaginar que tudo o que conhecemos esteja situado entre as palmas de nossas mãos em concha: a superfície externa das mãos representaria a fronteira com o que não sabemos. Quanto menos sabemos, menor seria a fronteira com o que não sabemos, menor seria a consciência do que não se sabe. Complementarmente, quanto mais conhecemos, mais inflada ficaria a concha de nossas mãos, maior seria a fronteira com o que não se sabe: quanto mais sabemos, mais sabemos quão pouco sabemos…

A imagem é de Nicolau de Cusa, no início do século XV. A mensagem é simples: quanto mais aprendemos, mais ignoramos. O aparente paradoxo é rotulado por Cusa como uma Douta Ignorância”. Longe do acesso socrático sugerido pelo “Só sei que nada sei”, a consciência cusana das limitações de nosso conhecimento do mundo é positiva. Ela associa o crescimento em termos cognitivos, condição básica da construção da consciência, com a humildade necessária a todos os que, sinceramente, buscam por um aperfeiçoamento pessoal.

         Significado: do binário ao multifário

Em situações binárias, uma ação justa decorre do posicionamento adequado no eixo bem/mal: os heróis nos ajudam a combater os vilões; as fadas vencem as bruxas.

Mas a vida não é um Conto de Fadas, e, rapidamente nos faz enfrentar questões em que o bem e o mal passeiam de mãos dadas. Os dilemas morais são exemplos de situações em que uma ação justa situa-se muito além de uma simples opção entre pares antagônicos.

A construção de significados mais complexos envolve situações multifárias: diversos pares de polarizações exigem de nós uma escolha ou um posicionamento crítico. Conceitos nascem da confluência e da composição entre diversos eixos, como arte/ciência, política/tecnologia, ética/espiritualidade; valores consolidam-se no cruzamento de polarizações como bom/mau, belo/feio, verdadeiro/falso.

Em geral, as ações práticas são multifacetadas e pressupõem um mapeamento de variáveis, um feixe de polarizações, um cruzamento de perspectivas. O multifário não nega o binário: apenas o amplifica.

Epistemologia chinesa

Para o filósofo chinês Chang Tung-Sun (1886-1973), o conhecimento humano deve ser examinado como se fosse constituído por quatro dimensões que se interpenetram e se complementam: as sensações imediatas, associadas a uma percepção bruta da estrutura externa do mundo; o conhecimento sensorial, que já consiste em pré-representações, derivadas das categorias linguísticas; as construções de objetos e conceitos, a partir das percepções do observador; e as interpretações, ou construções teóricas da realidade do mundo.

Os processos cognitivos não seriam, pois, vetores com origem nas sensações imediatas e extremidade em elaborações teóricas, mas constituiriam um infindável movimento de circulação entre as quatro faces de um tetraedro: as faces objetivas, da percepção bruta e do conhecimento sensorial, e as faces subjetivas, dos constructos e das teorias.

Tal permanente movimento parece zombar de categorizações absolutas, incorporando a ideia de uma realidade em permanente estado de atualização.

Conhecimento geométrico

A etimologia é expressiva, no caso da Geometria: ela se desenvolveu, inicialmente, a partir de medidas da Terra, que deviam ser refeitas periodicamente, em razão das cheias do Nilo. Com Euclides, por volta de 300 aC, uma sistematização formal do conhecimento empírico acumulado se deu, e a Geometria passou a organizar-se em termos de conceitos primitivos, definições, postulados, teoremas. Tão bem sucedida foi a empreitada euclidiana que o conhecimento geométrico tornou-se um modelo de organização para outras áreas, inspirando Newton, com as leis da Mecânica e até Spinoza, em sua Ética.

No ensino da Geometria, são comuns estratégias que partem da percepção sensorial de formas, de classificações e denominações, seguidas da busca de sistematização teórica, impregnada, quase sempre, de um formalismo informal.

Por mais natural que pareça, essa passagem do conhecimento empírico à sistematização formal não é suficiente para uma compreensão adequada de como se constrói o conhecimento geométrico.

Geometria: Tetraedro epistemológico

Na construção do conhecimento geométrico, em vez da polarização empírico/formal, é fundamental a compreensão de suas quatro faces constitutivas: a percepção, a construção, a representação e a conceituação.

Toda a fecundidade da geometria nasce da articulação entre as quatro faces mencionadas: percebemos para construir, construímos para perceber, representamos para conceituar, conceituamos para representar, representamos para construir, construímos para representar…

Tais ações não constituem fases, como as da Lua, que se sucedem linear e periodicamente, mas sim faces, com as de um tetraedro, cada uma em contato com todas as outras, configurando uma estrutura a partir da qual, de modo alegórico, podem-se apreender não apenas o significado e as funções do ensino de geometria, mas também a dinâmica dos processos cognitivos em geral.

Um desvio mortal é o isolamento ou a dominância de qualquer uma das faces do tetraedro: a geometria vive e se alimenta da contínua interação entre todas elas.

Significado: feixes binários

Em Tomás de Aquino, as virtudes compõem dois eixos cardeais: coragem/temperança, justiça/prudência. A natureza humana é lapidada no cruzamento de tais eixos, equilibrando-se a força para agir e a disposição para se conter, a crença na ordem maior do mundo e o discernimento pessoal nas ações práticas.

As competências pessoais são construídas a partir de três eixos fundamentais de polarizações: eu/outro, análise/síntese, concreto/abstrato. A pessoa competente expressa-se bem mas é capaz de ouvir; analisa mas toma decisões; contextua mas é capaz de abstrair os contextos.

As ideias do Cálculo constituem-se a partir do feixe de contraposições local/global, constante/variável, finito/infinito, discreto/contínuo: estudar Cálculo é buscar um diálogo entre os elementos de tais pares.

Os temas mais complexos podem ser abordados de modo similar. Não se trata de reduzir os significados a escolhas entre pares 0/1, mas de caracterizar cada um deles pelo feixe de polarizações relevantes que representa.

Normas: duas fontes e um desvio

 A vida em sociedade pressupõe uma regulação por normas, diante das quais somos todos iguais. Duas são as fontes básicas de normas. Na primeira, o ponto de partida é um fato, que traduz um valor socialmente acordado e inspira uma norma para seu cultivo. Na segunda, o ponto de partida é um valor, que inspira uma norma, em busca da instauração de um fato. A tradição inspira normas do primeiro tipo; já o preceito “todos os seres humanos nascem livres e iguais em dignidade e direitos” constitui uma norma do segundo tipo.

Ao refletir sobre o direito numa perspectiva semiótica, Greimas sintetizou o nascimento de normas em termos do par prescrição/proscrição. Uma norma surge para promover ou para proibir uma ação; para consolidar um costume ou para instaurar uma prática. Os eixos prescrever/não prescrever e proscrever/não proscrever, no entanto, precisam ser independentes. A corrupção do sistema ocorre quando as circunstâncias são tais que uma prescrição disfarça uma proscrição, ou vice versa. A analogia com a epistemologia de Cusa é quase imediata.

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