Há uma ideia tácita mais ou menos partilhada segundo a qual o que é Público refere-se diretamente ao Estado e o que é Privado pode ser associado ao Mercado. Privatizar uma atividade seria, então, subtraí-la da responsabilidade do Estado e entregá-la aos braços do Mercado. Trata-se, naturalmente, de uma simplificação excessiva. Uma compreensão mais abrangente da coisa pública (res publica) é condição necessária para uma vivência com os outros, numa sociedade democrática. De modo especular, carecemos também de uma compreensão mais plena do significado do Privado, sobretudo em tempos e espaços como o das redes sociais, em que pululam em espaços públicos explorações de imagens e/ou informações que seriam pertinentes apenas no âmbito do privado.
Em seu livro de despedida, publicado em 2004 e intitulado A Economia das Fraudes Inocentes, o economista John Kenneth Galbraith destaca algumas ideias do senso comum da Economia ensinada nas Universidades, que são apresentadas como verdadeiras, mas que constituem verdadeiras fraudes. De modo tolerante, tais ideias são rotuladas pelo autor como “fraudes inocentes”, ainda que algumas não mereçam efetivamente tal qualificativo. Uma delas seria precisamente a de que existiria uma distinção nítida entre o interesse público e o privado, ou, de modo geral, um critério nítido de demarcação entre os elementos do par Público/Privado. Com a autoridade de quem desempenhou funções de destaque em nível mundial na gestão da economia, incluindo-se um longo período na presidência do FED, que seria como um Banco Central americano, Galbraith expõe os meandros das complexas e delicadas relações entre o governo e a indústria de armamentos, nos EUA, o que desnudaria uma interferência incisiva, eticamente difícil de se aceitar. Nos últimos anos, vieram à tona na mídia muitas informações igualmente incômodas sobre certa promiscuidade nas relações entre os governos e a indústria farmacêutica. Ainda que os fatos divulgados possam comportar diferentes interpretações, não podendo ser considerados verdades absolutas, são muito sólidos os indícios de que o par Público/Privado carece urgentemente de uma revisão conceitual.
Nos dias atuais, as interfaces entre o Público e o Privado situam-se em três dimensões principais, nos terrenos da Economia, da Sociologia e da Política. Apesar de constantemente se misturarem, e de parecer praticamente impossível uma separação nítida entre tais dimensões, elas apresentam elementos distintivos que mereceriam uma atenção especial.
Na Economia, alguns ingredientes relativamente recentes parecem especialmente relevantes. O primeiro deles é o fato de que o conhecimento se transformou efetivamente no principal fator de produção, transformando substancialmente as ideias de autoria e de propriedade. Em terrenos como o da Medicina, ou da indústria farmacêutica, uma estrita privatização do conhecimento pode ser facilmente caracterizada como imoral, e uma espécie de habeas cognitio pode ser um instrumento tão importante no que se refere à vida como um valor quanto o habeas corpus representa no que tange à liberdade pessoal. O premiado trabalho que resultou no Prêmio Nobel de Economia para Elinor Ostrom em 2009, intitulado Understanding Knowledge as a Commons, representa um marco notável em tal percurso. Ao defender a caracterização do conhecimento como um commons, uma categoria criada para se contrapor à ideia de commodity, situando o conhecimento ao lado da água que partilhamos ou do ar que respiramos, Ostrom alinhavou elementos teóricos especialmente fecundos, a serem explorados no sentido de redefinir a relação entre o público e o privado na produção e na circulação do conhecimento, com as consequentes redefinições de autoria e de propriedade. Iniciativas como a do Creative Commons constituem apenas o ponta pé inicial de um jogo que acabou de começar.
No terreno da Sociologia, a partir da primeira metade dos anos 1990, com a contribuição e a rápida evolução das tecnologias informacionais, crescem a cada dia as evidências de uma singular promiscuidade entre o Público e o Privado. A possibilidade aberta a praticamente todos os interessados de um acesso às redes sociais, espaço em que, paradoxalmente, a autoria e o anonimato continuamente proliferam, fez, já há algum tempo, sua mais importante vítima: a ideia de verdade. O fenômeno das fake news ocupa espaço importante na circulação de informações, sobretudo em épocas críticas, como a das eleições. Se há muito se sabe que a Educação é condição de possibilidade do funcionamento de uma Democracia, mais recentemente tornamo-nos mais conscientes de que há muito o que aprender no que tange à partilha do espaço informacional, com sua peculiar maneira de imiscuir e promiscuir os espaços público e privado. Em meados do século XIX, Eça de Queirós advertiu um amigo que pretendia fundar um jornal, em uma carta a ele dirigida em que associa o aumento na circulação de notícias com o crescimento da intolerância. Ao acolher autores com ideias semelhantes, que continuamente se fermentam e se alimentam, os jornais, segundo Eça, em tal carta, poderiam favorecer tal desvio. Eça foi, sem dúvida, premonitório, os aspectos supostamente negativos que aponta nos jornais têm sido amplificados milhares ou milhões de vezes pelas redes sociais.
É no terreno da Política, no entanto, que as transformações nas relações entre o Publico e o Privado se tornam mais sutis e mais tensas. De fato, como bem apontou Galbraith no livro anteriormente citado, a divisão entre Estados capitalistas ou socialistas tornou-se claramente insuficiente para a caracterização da orientação política de cada um. A associação simplista do capitalismo com a prevalência do Privado, e o socialismo como a predomínio do setor Público rapidamente tornou-se inexpressiva. O fracasso de regimes como o da ex União Soviética pode ter sugerido, de início, um triunfo da perspectiva capitalista, mas rapidamente o capitalismo amplificou algumas de suas facetas mais perversas, como é o caso das dificuldades na circulação de bens fundamentais para a vida humana entre todos os necessitados. A despeito de tanto sucesso na produção de riquezas. em todos os lugares, a desigualdade iníqua é cada vez maior. E não se trata apenas de ocorrências de tais disparidades em países periféricos. Nos últimos meses, a divulgação ampla na mídia de um fato provocou desconforto e teve consequências práticas imediatas. Na divulgação dos resultados econômicos relativos ao ano de 2017, anunciou-se que o principal acionista de uma grande empresa no mercado do comércio e de tecnologia faturara em dividendos cerca de 3 bilhões de dólares, ao mesmo tempo em que o salário médio dos programadores de sua bem sucedida empresa seria de apenas 4 dólares a hora… Em cerca de um mês, a repercussão negativa provocou duas inciativas marcantes do principal acionista: uma doação de cerca de 1 bilhão para uma causa educacional nobre e, o que é mais importante, um aumento do piso salarial para os programadores para 15 dólares a hora… Um efeito político absolutamente desejável seria uma “contaminação” das políticas de remuneração de todos os empregadores, tanto no setor público quanto no privado, pela consciência, ainda que tardia, do acionista acima referido. Remunerar adequadamente o trabalho é, sem dúvida, a política mais consistente de distribuição de renda.
É na confluência dos terrenos da Economia, da Sociologia e da Política, no entanto, que se dá a mais sutil das reconfigurações entre as relações entre o Público e o Privado. Com a inexpressividade do par capitalismo/socialismo na referência à realidade política dos diversos países, operou-se uma nova caracterização de tal distinção: há Estados cujo sistema produtivo é caracterizado como uma Economia de Mercado; outros, teriam uma economia marcadamente estatal, ou seja, excessivamente regulada/controlada pelo Governo. A expressão “Economia de Mercado” passou a representar um modelo amplamente desejável, sublimando as restrições ao capitalismo. Ao mesmo tempo, a regulação estatal, que admite uma discussão importante sobre seus limites, mas não sobre sua existência, passou a ser vista como intrinsecamente indesejável, tangenciando, às vezes, a seara do anarquismo.
O aspecto sutil de tal mudança de perspectiva é a ocorrência concomitante de uma prosopopeia do Mercado, ou uma especie de humanização de tal constructo . Todos os dias, somos informados de que “o mercado está nervoso”, “o mercado está otimista”, “o mercado reagiu mal às medidas do Governo”, como se a entidade “Mercado”, ou o Modelo da Economia de Mercado, ao invés de se esforçar para representar a realidade, às vezes falhando em tal intento, passasse a reger a realidade, como se tivesse vontade própria. Para representar uma síntese efetiva entre os interesses Público e Privado, o Mercado não pode ser como um ser humano isolado, uma pessoa desvinculada dos interesses da sociedade. O Mercado não é bonzinho ou malvado, é o que nosso projeto de país quiser fazer dele.
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