I. Sobre a VIOLÊNCIA

I.1 – Violência e desrazão

Não existe razão na violência: é preciso extrair consequências da banalidade de tal fato.

Uma vez deflagrada, a violência se autoalimenta. Cada agressão provoca uma reação de intensidade maior ou igual, expandindo a desrazão em espiral desenfreada.

Parece legítimo reagir à violência e efetivamente o é, se atuamos como bichos. Os seres humanos, no entanto, não vivem de reações impulsivas; temperamos com a razão as reações instintivas e assumimos a responsabilidade pelas ações que realizamos.

O combate à violência exige constante atenção, grandeza, generosidade. A atenção é necessária para não iniciar uma cadeia de reações animais, sempre crescente, que logo fugirá ao controle da razão. Se, por descuido ou imprudência, a espiral se instalou, somente a grandeza e a generosidade poderão contê-la e encerrá-la. A grandeza de pautar-se por valores maiores, que transcendam os objetivos da disputa; a generosidade de restaurar a confiança na palavra por meio do perdão, a mais perfeita das doações.

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I.2 – A palavra como antídoto da violência

A eclosão da violência é a falência da palavra. Quem não acredita mais na ação consciente, geminada com a palavra, abre as portas para a violência. Para evitá-la ou combatê-la, é preciso semear ou restaurar a confiança perdida na palavra.

A violência nunca se justifica como ação consciente, sempre como reação: foi o outro que começou. Reagir é o modo de atuar dos animais: enquanto nos limitamos a isso, seguimos como bichos, alimentando cadeias de reações e a lógica do “bateu-levou”. A reação é produto de uma volição de 1º nível, uma vontade quase sempre cega; situa-se em patamar inferior ao da resposta, da responsabilidade. Ser responsável é pautar-se por uma volição de 2º nível, uma vontade de ter certas vontades e não outras, o que dá origem à consciência, ao modo de ser do ser humano.

Nenhuma Ética pode derivar de uma cadeia de reações: no máximo, uma Lei de Talião, “olho por olho, dente por dente”. O agir ético somente é possível com liberdade, consciência e a generosidade do perdão.

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I.3 – A palavra como instrumento da violência

Uma forma perversa de violência é a que se dá por meio da palavra. Algumas agressões verbais doem mais do que uma bofetada. A violência por meio da palavra é ainda mais incisiva quando assinamos um contrato: ali está escrito com todas as letras que não confiam em nossa palavra e somos ameaçados com punições caso não cumpramos o que está escrito. Um contrato é uma forma moderna de virtualização da violência.

  Mais sutil ainda é a violência da palavra que nos é dada, mas os espaços de resposta são formatados e não podemos expressar livremente o que queremos. Se um sistema de representação inadequado nos conduz à escolha de candidatos entre opções que não nos satisfazem, a palavra que nos oferecem é violentamente formatada. A ausência de violência pressupõe uma situação ideal de fala, em que os participantes do discurso buscam a verdade, a ação comum, a comunicação, o consenso. A convivência democrática pressupõe a ausência da violência, incluindo-se a que se realiza por meio da palavra.

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I.4 – Doar, perdoar

Todos já experimentamos o valor da doação, a dádiva espontânea, cujo único interesse é a criação do laço. A que subsiste na atenção que se dá ao outro, ao se dar bom dia, ao dar a palavra, ao dar a vez no trânsito. São experiências simples, verdadeiros presentes mútuos que nos ajudam a viver e a conviver. Sem a doação, as relações interpessoais tornam-se meras trocas mercantis. A vida não pode prescindir da doação sem que nos transformemos em meros objetos. Na verdade, o motor de nossa ação é a doação. O que nos alimenta continuamente é a capacidade de nos voltarmos para os outros e com eles estabelecer laços densos, que nos constituem como pessoas.

Uma das doações mais sutis e significativas é o perdão. O “per” de “perdão” é como o de “perfeito”. Algo é perfeito quando é feito do modo mais adequado, mais completo, mais verdadeiro que se pode imaginar.

Nenhuma doação é mais perfeita do que o perdão. Perdoar é doar perfeitamente. O perdão é o antídoto mais eficaz no combate à violência.

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II. Sobre a AUTORIDADE

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II.1 – Autoridade e responsabilidade

Não há duas palavras mais inextricavelmente ligadas: exercer uma autoridade significa assumir responsabilidades. Quem não quer assumir a responsabilidade pelos atos de outros, não pode exercer autoridade.

Tudo começa com o autocontrole, ou com a autoridade sobre si mesmo. Dentro de nós existe um âmbito no qual somos a maior autoridade sobre nós mesmos: invadir tal âmbito é destruir a integridade pessoal. A contrapartida para o respeito a esse âmbito é a responsabilidade que decorre da consciência pessoal. Agir de modo consciente pressupõe responder pelas consequências dos próprios atos.

Naturalmente, tanto em situações normais quanto nas extraordinárias, buscamos a “autoridade responsável”. É muito importante, no entanto, o fato de que toda autoridade tem limites; excedê-los é próprio do sempre indesejável autoritarismo. A autoridade do Presidente da República tem um âmbito imenso, mas não lhe permite determinar o modo de escovar meus dentes; isso é da responsabilidade do meu dentista. 

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II.2 – Bom senso e responsabilidade

A ironia cartesiana já anunciara: o bom senso é a coisa mais bem distribuída do mundo. Ninguém acha que precisa mais do que tem, nem mesmo o mau poeta. Se há algo que carece de uma distribuição mais ampla e igualitária, é a responsabilidade pelo mundo.

Há mais de 50 anos, Hannah Arendt alertou para o fato de que a crise na Educação residia na ideia de autoridade. Não deve ter filhos, nem educar crianças, quem não assume a responsabilidade pelo mundo. O que não significa conformar-se com a realidade. A transformação e a conservação do que existe, no entanto, pressupõem a ordem e a autoridade. Discursos que anunciam a necessidade de uma demolição total para a emergência do novo são, frequentemente, ingênuos, suspeitos ou irresponsáveis.

Não começamos do zero a cada dia, nem podemos congelar a vida. Não nascemos com um “manual do fabricante”, que indique o que deve ser conservado e o que deve ser transformado. O discernimento na ação é construído diariamente, com racionalidade e bom senso.

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II.3– Autoridade e tolerância

No cotidiano escolar, na liderança de sua equipe, o diretor é a autoridade máxima. Quando a exerce, é importante ter em mente três ideias básicas: responsabilidade, limites, tolerância.

Não é possível exercer uma autoridade se não se assume as responsabilidades inerentes: tomar iniciativas, delegar tarefas, mas responder pelos atos dos outros é absolutamente essencial. Mas toda autoridade tem limites e exerce-se em determinado âmbito, regulado por normas: extrapolá-los é abrir a porta para o indesejável autoritarismo.

O ponto crucial da questão é o fato de que as ideias de autoridade e de tolerância estão sempre intrinsecamente associadas. A própria caracterização de alguém como tolerante ou intolerante não é possível senão no exercício de uma autoridade efetiva.

Convém destacar, no entanto, que, mesmo para a autoridade mais tolerante, nem tudo é tolerável. Tratar uma pessoa como meio para fins alheios a ela, ou ameaçar sua integridade pessoal é, em qualquer circunstância, intolerável.

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II.4– Autoridade e competência

Poucas ideias alimentam-se mutuamente com tanta intensidade quanto as do par autoridade-competência. Ambas se relacionamdiretamente com a ação efetiva. A primeira representa uma ação sobre os outros, uma coação legítima, consentida. A segunda, uma ação com os outros. Etimologicamente, com peterederiva de saber pedir, mobilizar recursos juntamente com os outros. As duas ideias exigem a definição de um âmbito: em termos humanos, não existem autoridade ou competência para todos os âmbitos. Mesmo a suprema autoridade ou a extrema competência têm limites inexoráveis.

A ideia de autoridade está umbilicalmente ligada à de responsabilidade pela criação/iniciação de algo novo em algum lugar ou em alguém. De tal responsabilidade deriva grande parte do consentimento inerente à legitimidade da coação correspondente. Mas a fonte maior de tal consentimento é, realmente, a imprescindível competência da autoridade no âmbito específico. Sem ela, toda autoridade se esvai ou se degrada em autoritarismo.

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 III. Sobre a LIBERDADE

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III.1 – Liberdade e autonomia

A ideia de liberdade como ausência de vínculos ou constrangimentos para nossa ação é uma ficção sem sentido. Somos sempre limitados pela presença do outro em nossas vidas; sujeito é quem se submete a isso e age em sintonia com tal fato.

As leis ordenam a vida em sociedade e nos constrangem a todos: somos iguais diante delas. Mas nós é que fazemos as leis que nos regulam, se não diretamente, por meio de nossos representantes. Quando consideramos justa uma lei, então a fazemos nossa, é como se a tivéssemos feito; quando a lei nos parece injusta, agimos no sentido de mudá-la. A ideia de justiça não é simples, mas nos acercamos dela por meio da percepção de seu oposto, a injustiça, mais fácil de ser apreendida.

Na vida cotidiana, liberdade não significa, pois, ausência de constrangimentos, mas existência de autonomia. Em grego, nomosé lei, e autonomia quer dizer obedecer a lei que nós fizemos ou que fizemos nossa.

Nas palavras de Octavio Paz, a liberdade consiste na escolha da necessidade.******

III.2 – Liberdade Positiva e Negativa

 Segundo Montesquieu, a liberdade consiste em agir segundo as leis e poder fazer tudo o que elas não proíbem. Modernamente, pensadores como Berlin e Bobbio caracterizam dois tipos de liberdade: a positiva e a negativa. A liberdade negativa consistiria, respeitadas as leis vigentes, em não se poder obrigar alguém a fazer ou deixar de fazer algo; a liberdade positiva seria o direito de poder orientar as próprias vontades para objetivos específicos e tomar decisões pessoais, nos limites da lei. As duas se interceptam e pressupõem a existência de uma zona neutra, entre as prescrições e as proscrições, um território não regulamentado por leis em que prevalece o livre arbítrio.

De fato, nem tudo na vida pode ou deve ser regulado por leis. A estética e a religiosidade são exemplos de espaços em que não prevalecem prescrições ou proscrições. As leis regulam os espaços da igualdade; quem as cumpre, conquista o direito fundamental de alimentar diferenças pessoais e vivenciar a liberdade positiva.

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III.3– Leis demais ou leis de menos?

A vida em sociedade pressupõe a existência de leis reguladoras. Uma questão interessante é se existem leis demais ou leis de menos. Numa discussão séria, nem a inexistência de leis, nem a meta de absoluta regulação parecem pertinentes. Uma vida ética exige um espaço de livre arbítrio.

Um tema similar é o das formas de governo. Em termos conceituais, o espaço de manobra iria da anarquia, ou a ausência de governo (em grego, arché é poder), até os modelos coletivistas, em que o Estado nos trata como formigas ou abelhas. Nenhum anarquista sério pretende a ausência de governo: o tamanho e as funções do Estado é que estão em questão. Uma obra clássica de R. Nozick (Anarquia, Estado e Utopia, 1974) pode ser suficiente para esclarecer tal fato.

A limitação no número de leis e no tamanho do Estado é fundamental para garantir um espaço de liberdade dos cidadãos, mas é preciso manter vivo o conselho de Einstein: Tudo deveria ser feito da maneira mais simples possível: não mais simples do que isso.

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III.4 – Sobre a necessidade de leis

Na vida cotidiana, algumas práticas são incorporadas como hábitos, certas proibições ou prescrições tornam-se tão naturais que esquecemos as motivações e os contextos que as geraram, e podemos até considerar desnecessárias as leis que as regulam. São bem conhecidas situações em que somente a consciência da perda relembra ou revela o valor do que, tacitamente, se desfrutava.

Sexto Empírico, médico e filósofo que viveu em Alexandria nos dois primeiros séculos da era cristã, descreve uma estratégia interessante dos antigos persas, para provocar uma reflexão sobre o sentido das leis. Quando morria um rei, promovia-se um interregno em que todas as leis eram temporariamente revogadas durante um período de cinco dias. Relata o filósofo que tal hiato era apavorante, uma espécie de vale tudo no qual o sentido de cada lei era revigorado. Ou não.

É difícil imaginar, nos dias atuais, uma medida semelhante. Uma experiência de pensamento, no entanto, já parece suficiente como reflexão sobre tal tema.

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IV. Sobre DIREITOSe DEVERES

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IV.1 – Direitos e deveres: equilíbrio

A Declaração Universal de Direitos Humanos (1948) é um belo documento e todo professor deveria, um dia, apresentá-lo a seus alunos. É patente, no entanto, seu desequilíbrio no que se refere ao par Direitos/Deveres. Do Artigo 1º (“Todos os seres humanos nascem livres e iguais em dignidade e direitos…”) até o trigésimo e último artigo, há um quase absoluto silêncio com relação aos deveres inerentes aos seres humanos.

O fato é compreensível, nas circunstâncias do período pós-guerra: a desordem institucional reinante foi determinante do teor de tal lista, cujo papel seria fundamental na reconstrução a ser iniciada. Mas não há como tergiversar: o equilíbrio entre direitos e deveres ainda está por ser equacionado.

Passados mais de 60 anos, é preciso equilibrar o jogo, dando atenção a outro documento, um tipo de “Declaração Universal dos Deveres Humanos”. Pois, se é dever do Estado a garantia dos direitos dos cidadãos, simetricamente, é direito do Estado que os cidadãos cumpram seus deveres.

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IV.2 – Deveres Humanos: Documentos

A Declaração Universal de Direitos Humanos (1948) tem como parceira um documento fundamental, bem menos conhecido, intitulado Declaração dos Deveres Humanos e Responsabilidades, formulado pela UNESCO em 1998. Nele são associados direitos e deveres de modo inextricável. Por exemplo, o direito à vida e a responsabilidade pela preservação da natureza; a liberdade pessoal e o dever de combater a corrupção e construir uma sociedade ética; e assim por diante.

De modo similar, uma Declaração de Responsabilidades e Deveres Humanos foi divulgada pela Fundação Valência Terceiro Milênio, em 2002, em sintonia com a UNESCO e com diversas outras entidades representativas nos âmbitos da política, da ciência, da arte, entre outros. De estrutura idêntica ao documento anteriormente citado, a nova carta de princípios põe em evidência um fato há muito reconhecido nos terrenos da ética e da política: a absoluta banalização na reivindicação dos direitos sem que sejam assumidas as responsabilidades inerentes.

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IV.3 – Deveres Fundamentais

Poucos filósofos exerceram tão plenamente a cidadania quanto Norberto Bobbio, pensador italiano e senador vitalício ao longo dos últimos 20 anos de sua fecunda existência. Refletiu intensamente sobre os direitos humanos e alertou para a necessidade do cultivo dos deveres, tanto do cidadão quanto do Estado.

Para Bobbio, o mais fundamental dos deveres do cidadão é o reconhecimento da necessidade dos laços com os outros. Superar o egoísmo, respeitar as diferenças, cultivar a tolerância são condições primordiais para a vida em sociedade.

Para o Estado, o primeiro dever é cultivar o bem comum, articular compromissos públicos e privados, não permitir que interesses pessoais dos governantes se sobreponham aos projetos coletivos.

Parece simples, mas não é. Por um lado, para o mais tolerante dos cidadãos, existe o intolerável; por outro, não compete ao Estado democrático determinar projetos coletivos, mas apenas administrar a diversidade de tendências e perspectivas nascidas no seio da sociedade.

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IV.4 Direitos e Deveres: Assimetria

Ainda que direitos e deveres sempre estejam diretamente relacionados, existe certa assimetria entre os elementos desse par. Não se pode estabelecer uma relação de equivalência entre tais elementos. Em muitas situações, cumprir com o dever independe do fato de os direitos correspondentes estarem ou não assegurados.

De um profissional, por exemplo, espera-se que cumpra seus deveres independentemente do fato de seus direitos estarem a descoberto. Nem toda ocupação é uma profissão: a marca do profissionalismo é um senso do dever. Reivindicar direitos, incluindo os referentes aos salários, é perfeitamente justo e legítimo, mas exige outros fóruns. Um médico ou um professor não podem fugir às responsabilidades inerentes a sua função em razão de seus salários não estarem em dia. Kantianamente, os deveres profissionais estão acima de tudo. Tentar compensar um direito subtraído com um dever não cumprido é absolutamente indefensável. Uma disposição ética sempre pressupõe certo tipo de assimetria.

*****SPset2019

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