USP/Faculdade de Educação 1ºsemestre/2023 Ano XXVIII
Seminários de Estudos em Epistemologia e Didática
TEMA
Um passeio pré-conceitual em espaços de
significados do par Igualdade/Diferença
Nílson José Machado
nilsonjosemachado.net
njmachad@usp.br
EMENTA
O Tema do Seminário é uma exploração pré-conceitual (não formal) das interfaces da ideia de Igualdade com as ideias de Diferença, Equivalência, Desigualdade e Simetria, articulando algumas relações fundamentais para a compreensão das noções de Cidadania, Pessoalidade, Equivalência, Ordem, Equidade, Mérito, Iniquidade, Dádiva, Autoridade e Ética. Na forma de uma exposição dialogada, a atividade será aberta a questões dos participantes durante todo o “passeio”.
Sumário
Introdução: Um alerta necessário
- O par Igualdade/Diferença: as noções de Cidadania e Pessoalidade
- O par Igualdade/Equivalência: as noções de Classificação e Ordem
III. O par Igualdade/Desigualdade: as noções de Mérito, Equidade e Iniquidade
IV. O par Simetria/Assimetria: as noções de Dádiva, Autoridade e Ética
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Introdução: Um alerta necessário
“Lutar com palavras
é a luta mais vã.
Entanto lutamos
mal rompe a manhã.
…
Lutar com palavras
parece sem fruto.
Não têm carne e sangue…
Entretanto, luto.”
Carlos Drummond de Andrade
(O lutador)
A luta é vã, como registra o poeta, mas viver é lutar, retruca outro, e nos muros de Paris, em maio de 1968, uma das inscrições dizia: “Chega de fazeres, queremos palavras!” Pelo sim ou pelo não, vamos à luta.
Não falaremos aqui de conceitos, apenas de noções, de ideias iniciais, intencionalmente pré-conceituais, no sentido de que, humildemente, situamo-nos na antessala dos conceitos. A discussão conceitual é mais exigente, trazendo à tona definições, classificações, ordenações, causalidade… Vamos apenas conversar, ou versar junto com, sem qualquer intenção de converter.
Sabemo-nos, pois, preconceituais, nunca, porém, preconceituosos. O pré-conceitual sabe-se menos que o conceitual; o preconceituoso é o pré-conceitual pretensioso, metido a conceito: a hybris não tardará.
Roteiro (em Bullets)
- O par Igualdade/Diferença: as noções de Cidadania e Pessoalidade
- A Igualdade é valor fundamental, mas alguns mal-entendidos cercam interfaces de tal noção com ideias como a de diferença, por exemplo.
- Iguais como cidadãos, somos diferentes como pessoas, e gostamos disso; o elogio da igualdade não pode significar o desprezo pela diferença.
- A vida em sociedade pressupõe a existência de normas reguladoras e todos são iguais perante a lei, ou deveriam sê-lo, na vigência de um regime democrático.
- Nem tudo na vida social pode ser regulado por normas; precisamos da vivência de escolhas pessoais, ou de espaços de livre arbítrio; não somos robôs.
- O gosto pessoal, a arte, a estética, os valores cultivados constituem uma marca pessoal, um “fundo insubornável” da pessoa, nas palavras de Ortega y Gasset.
- Nesse fundo pessoal, somos a maior autoridade sobre nós mesmos, e assumimos a plena responsabilidade pelos nossos atos.
- A desobediência civil é um princípio que nos garante que não respeitemos a lei em ações não violentas, desde que a responsabilidade pessoal seja efetivamente assumida.
- As diferenças pessoais constituem-se a partir de escolhas referentes aos projetos que alimentamos e aos valores que os sustentam.
- Uma pessoa pode ser caracterizada pelo feixe de papeis que representa; o primeiro de tais papeis é o de “filho de alguém”.
- Dentre os papeis que representamos, ora somos protagonistas, ora coadjuvantes, ora figurantes; dar o melhor de si em cada representação é o caminho da ética.
- Uma pessoa bem formada procura representar bem todos os papeis que lhe cabem; protagonistas sempre apenas nossa mãe nos acha, dependendo do contexto…
- Resumindo, somos iguais como cidadãos, em espaços regulados por normas, mas somos diferentes como pessoas, em espaços de livre arbítrio, e gostamos disso.
- O par Igualdade/Equivalência: as noções de Classificação e Ordem
- Rigorosamente falando, uma coisa somente é igual a si mesma; dizer que A é igual a B significa apenas que, naquilo que interessa, A pode ser substituído por B, ou vice-versa.
- Duas notas de 100 Reais são iguais em seu poder de compra, mas têm numerações distintas, que podem ser decisivas em um roubo a Banco.
- Em Matemática, 3/5 não é igual a 6/10 enquanto processo de divisão da unidade; mas é igual naquilo que vale, ou seja, 3/5 e 6/10 representam a mesma parte da unidade.
- De modo geral, dizer igual naquilo que vale, em cada contexto, é dizer equivale, ou seja, a ideia de igualdade perde terreno para a ideia de equivalência.
- A noção de equivalência é muito fecunda: podemos falar de equações equivalentes, de objetos semelhantes como aqueles que são equivalentes quanto à forma etc.
- Uma maneira de a Matemática operar é a organização de conjuntos bagunçados por meio da identificação de classes de equivalência e a ordenação das classes.
- Os autos em circulação na cidade, por exemplo, podem ser organizados pela elação “o que vale é a cor”: daí, resultam as classes de autos “pretos”, “brancos”, “pratas” etc…
- Classificações inspiram ordenamentos, a qualidade gera a quantidade: há mais carros brancos do que pretos, são poucos os carros laranjas etc.
- A tecnologia é um espaço especialmente fecundo para a simbiose classificação/ordenamento: os algoritmos são um exemplo precioso.
- É muito diferente quando resolvemos um problema, mesmo no caso de solução ótima, ou quando resolvemos um problema típico de uma classe de problemas.
- No caso de resolvermos uma classe de problemas, ordenar tal solução em etapas consecutivas é construir um algoritmo.
- As classificações são férteis, portanto, ao encaminhar a solução não apenas de um problema, mas sim de uma classe de problemas; e viva os algoritmos…
- O par Igualdade/Desigualdade: as noções de Mérito, Equidade e Iniquidade
- O elogio da igualdade não pode conduzir ao desprezo pela diferença, nem à desconsideração da equidade, tampouco da desigualdade fundada no mérito.
- O exemplo da saúde é especialmente ilustrativo da insuficiência do simples pensamento igualitário: é preciso dar mais atenção a quem mais precisa.
- Atletas olímpicos têm desempenhos desiguais, assim como músicos ou artistas em geral: como considerar a realidade das hierarquias de desempenhos?
- Como negar o papel da competição, que inclui a colaboração e o trabalho em equipe, na busca de aperfeiçoamento, com a fé na perfectibilidade?
- Competência e competição são palavras com etimologia comum: com+petere é saber pedir (no sentido de buscar) junto com os outros.
- Competições com foco apenas em bens materiais podem conduzir à exclusão; quando se busca o conhecimento, podemos crescer junto com os outros.
- Na crítica sistemática à ideia de competição, não seria o modo de competir, ou o princípio the winner takes all, que estaria sendo questionado?
- As competições excludentes estão no cerne das disputas econômicas iníquas, em que o segundo lugar é o primeiro dos derrotados: é preciso colaborar.
- O combate sistemático à competição se funda em lembranças de desigualdades econômicas iníquas: 50% da população mundial vive com menos de 2 dólares/dia.
- Vemos crianças buscando alimentos em lixões, remédios sendo tratados como mercadorias, salários sendo mais taxados do que rendimentos do capital…
- Não se combate a iniquidade com a igualdade de renda generalizada: medidas como a postulação da dignidade humana como o valor maior vêm antes.
- Apontam na mesma direção a valorização do trabalho humano e o combate à mediocridade, ou à redução do sentido da vida à luta pelos meios de subsistência.
- O par Simetria/Assimetria: as noções de Dádiva, Autoridade e Ética
- A simetria mantém uma interface com a igualdade: a cada ação corresponde uma reação igual em intensidade, mas em sentido contrário, nos diz Newton.
- A lei é famosa, mas tem um calcanhar de Aquiles – no terreno da Ética, não nos conduz a mais do que a Lei de Talião: olho por olho, dente por dente.
- A aparência de legitimidade da simetria ação/reação também se dissolve no combate à violência; a frase “foi ele que começou” é fatal na justificativa do revide.
- Na constituição do ser humano, uma ação absolutamente assimétrica é fundamental: trata-se da dádiva, ou da ação de doar, de se doar, de presentear.
- O motor da dádiva, a motivação de base é a criação do laço: assim nasce um presente, nunca da ideia de troca de valores equivalentes.
- Para romper uma cadeia de violência, necessitamos sempre de uma iniciativa dadivosa: perdoar vem de per donare, da mais perfeita das doações, o perdão.
- A assimetria também é fundadora da ideia de autoridade; se autoria tem a ver com criação, autoridade relaciona-se com criação de ordem.
- Um espaço que traz a marca da assimetria é o do par direitos/deveres; a não garantia de meus direitos não me autoriza ao descumprimento de meus deveres.
- Aqui a simetria dá lugar à dualidade: é dever do Estado garantir os direitos do cidadão, mas é direito do Estado exigir que o cidadão cumpra seus deveres…
- Um dos espaços marcados pela assimetria é o do par autoridade/responsabilidade: a expressão “autoridade responsável” é um pleonasmo vicioso.
- No exercício da autoridade a partilha de responsabilidades pode conduzir naturalmente à ideia de corresponsabilidade, que tangencia a antissimetria.
- Especialmente interessante é a simetria em química e geometria, com a ideia de quiralidade, ou de objetos simétricos não superponíveis, como as nossas mãos.
**** SP/mar2023
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