Desde que se tornou a etapa final da Educação Básica, o ENSINO MÉDIO parece padecer do que se poderia chamar de Síndrome de Janus. Por um lado, como parte da Educação Básica, deve contemplar os conteúdos disciplinares correspondentes, destacando as ideias fundamentais, necessárias para a formação pessoal dos alunos, para a vivência e a convivência em uma democracia; tal seria a dimensão autotélica de tal nível de ensino. Por outro lado, de modo geral, o Ensino Médio deixa-se pautar demasiadamente por conteúdos relativos ao Ensino Superior, superestimando o significado formativo do vestibular e exagerando o caráter propedêutico de tal nível de ensino.

Uma consequência natural de tais fatos tem sido a enorme sobrecarga de conteúdos, expressos nos programas das múltiplas disciplinas que compõem o currículo do Ensino Médio, o que traduz o fato de que o vestibular se transformou, para muitos, numa barreira artificial a ser ultrapassada, às vezes com sacrifício, para, então, se ter direito de estudar conteúdos que realmente interessam. As imagens observadas pelas duas faces de Janus encontram-se distorcidas: a formação básica de qualidade certamente é desejada para todos os alunos; a universidade deve ter uma porta aberta à demanda dos alunos, mas não é uma condição sine qua non para o exercício da cidadania que todo cidadão tenha um curso em nível superior.

Alguns efeitos resultantes de tal sobrecarga curricular no Ensino Médio são os seguintes: a acentuada fragmentação disciplinar torna difícil a compreensão do significado dos temas estudados, ao mesmo tempo em que se perde o interesse nos conteúdos que se pretende ensinar, e junto com isso, a capacidade de distinguir o que é relevante e o que é irrelevante, entre o que é fundamental e todos precisam conhecer, e o que é suplemento, complemento ou aprofundamento dos estudos, a ser realizado apenas pelos especialmente interessados em tais temáticas. Tais efeitos constrangem todos os alunos a percorrerem as mesmas trajetórias, a estudarem as mesmas matérias, não possibilitando uma diversidade de interesses que alimenta o ambiente escolar e dá vida a projetos pessoais de cada aluno.

O Novo Ensino Médio propõe-se a responder diretamente às demandas supra referidas. A carga horária foi dividida em duas partes: 60% corresponderiam aos conteúdos fundamentais, a serem estudados por todos os alunos; os 40% restantes corresponderiam a escolhas pessoais dos alunos, que elegeriam um entre alguns Itinerários Formativos, em função de sua vocação, de seu projeto de vida. A construção de um critério para distinguir o fundamental do complemento também é um aspecto sobre o qual a reforma tem propostas consistentes. E a inclusão da formação profissional no âmbito dos itinerários também parece pertinente.

Alguns problemas de implementação, no entanto, ocorreram, em alguns casos de modo tão agudo que chega a lembrar a máxima latina: “A corrupção do ótimo é o péssimo”. O primeiro deles – e o mais carente de providências – é o fato de que praticamente nenhuma iniciativa de fôlego foi tomada no sentido de discernir os conhecimentos referentes aos conteúdos/fundamentos dos conteúdos/suplemento-complemento-aprofundamento. Os conteúdos dos livros didáticos certamente vão muito além do que é fundamental: é necessário um critério para discernir o que é fundamental e o que pode ser deixado como conteúdo opcional para alunos especialmente interessados. Quem aprende o fundamental, a qualquer momento que deseje, pode procurar o suplemento, o complemento, o aprofundamento; quem, no entanto, supostamente aprendeu muitas coisas, mas sem critério, misturando o relevante e o irrelevante, não se instrumentou o suficiente para ir adiante de maneira autônoma. Reiteramos que a realização de tal exercício de discernimento ainda está por se fazer, e sem ela a da reforma não pode avançar.

Outro ponto em que houve grandes mal-entendidos na tentativa de implementação da nova organização curricular foi a construção dos itinerários formativos. Apenas para citar um exemplo, o documento de partida imaginou a implementação de cinco itinerários, sendo quatro deles correspondentes às quatro áreas em que o conhecimento se organiza na escola, e a quinta correspondendo à formação profissional em nível médio. Para se dar uma ideia da dimensão do mal entendido, na rede pública estadual, os itinerários formativos possíveis são 31, sendo 10 correspondentes às áreas em que o conhecimento se organiza e 21 correspondentes a 21 cursos de formação técnica. (As 10 correspondentes às áreas interdisciplinares são as 4 áreas e mais as combinações das 4 áreas duas a duas, o que dá 6). Realmente, a fragmentação disciplinar parece ter contaminado a organização dos itinerários formativos.

Resumindo, o projeto do Novo Ensino Médio tem metas pertinentes, como o discernimento entre o fundamento e o suplemento / complemento / aprofundamento, com a distribuição de 60% para o fundamento, que viabiliza que cada aluno busque os 40% de escolhas pessoais, que constituirão as identidades pessoais dos alunos. Os itinerários formativos podem, e até mesmo devem contemplar a formação profissional, mas de modo algum podem limitar-se a ela. A diversidade de interesses pessoais tem o foco concentrado nos projetos de vida dos alunos. A construção e exploração de critérios nítidos para a distinção entre os conteúdos fundamentais, a serem estudados por todos os alunos, de outros conteúdos, a serem escolhidos pelos alunos em suas trajetórias vitais, dentro da diversidade de seus itinerários formativos, é uma tarefa extremamente relevante, ainda não levada, nem minimamente, a efeito.

Sem explorar as especificidades pertinentes, as propostas consistentes, as qualidades indiscutíveis presentes no Novo Ensino Médio é quase uma leviandade a sugestão de abandono da implementação em curso. Não parece justo condenar um curso em razão de tão visíveis acidentes de percurso.

 

 

 

 

 

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