1Análise do livro    “Pensamento e Linguagem”, de I.S. Vygotsky

(Antídoto, Lisboa, 1979) 

. Impressões de leitura

A análise das relações entre o Pensamento e a Linguagem é um tema básico em Psicologia e Linguística, existindo vários livros com o mesmo título do de Vygotsky, ou alguma variante próxima. No entanto, a impressão que fica após a leitura deste “PENSAMENTO E LINGUAGEM” é a de que, realmente, trata-se de um texto ímpar e fundamental.

. Imagens analógicas

A leitura é agradável e a notável erudição do autor, que aflora aqui e ali, não se constitui um óbice para a compreensão de sua mensagem; em vez disso, torna a viagem ao longo do texto bastante enriquecedora. As abundantes imagens analógicas utilizadas para a transmissão de informações são precisas e preciosas.

Por exemplo, logo no início (p.13), quando examina os métodos de análise utilizadas pelos investigadores que o precederam, Vygotsky registra que eles se caracterizavam pela consideração dos elementos distintos – Pensamento e Linguagem – como se se fizesse a análise química da água em Hidrogênio e Oxigênio. Cada um destes elementos em si não possui as propriedades da água: o Hidrogênio arde e o Oxigênio alimenta o fogo enquanto a água apaga. Assim, não se consegue compreender as propriedades da água a partir das propriedades dos elementos que a compõem; a menor unidade a ser analisada deve ser a molécula de água, assim como a menor unidade para a análise biológica que conserva as propriedades básicas do organismo vivo é a célula. No caso do composto pensamento-linguagem, a unidade mínima que conserva as características básicas do que se quer examinar encontra-se no aspecto interno da palavra, em seu significado. É no significado que o pensamento e o discurso se unem constituindo o pensamento verbal, conceitual. É no significado, portanto, que se podem encontrar as respostas às indagações sobre as características das relações entre pensamento e linguagem.

A riqueza da analogia acima não se constitui em fato isolado; muitas outras espraiam-se por todo o texto.

. Fluência e literatura

O texto flui facilmente. Em muitos momentos soa literário, sem se afastar, no entanto, da objetividade pretendida. Por exemplo (p.17), ao enfatizar que a comunicação por meio de movimentos expressivos, observada, sobretudo, entre animais, não é tanto comunicação quanto uma difusão de afeto, escreve:

“O ganso atemorizado que de súbito se apercebe de um perigo e alerta todo o bando com seus gritos não está dizendo aos restantes o que viu, antes está contaminando os outros com seu medo.”

São constantes as referências a obras literárias como as de Tolstoy, Dostoyevsky e outros. Tais citações, adequadamente situadas, revelam-se extremamente elucidativas e enriquecem significativamente a leitura. Antológico é o pequeno poema (citado à página 185) que, sem referências explícitas, conduz-nos a uma reflexão obrigatória sobre a comunicação entre professores e alunos na sala de aula:

Dois surdos são julgados por um surdo juiz

“Este roubou-me a minha vaca”, um deles diz,

“Alto aí, essa terra”, o segundo replica

“sempre foi do meu pai e comigo é que fica!”

E o juiz: “mas que vergonha, tanta briga!”

“A culpa não é vossa, é da rapariga.”

Estes são apenas alguns poucos exemplos de como a leitura consegue ser, a um tempo, leve, profunda, instigante e provocativa.

. Estruturação do texto

O texto alia de modo singular densidade conceitual, relato de pesquisas e preocupações pedagógicas. Refiro-me a preocupações pedagógicas com o próprio texto e não, obviamente, às decorrentes do tema tratado. Assim é que, tal como as cheias periódicas do Nilo adubavam e revigoravam as terras marginais para novo tempo de plantio, de quando em quando somos lembrados, ao longo da leitura, dos fatos fundamentais anteriormente estabelecidos, das hipóteses testadas em páginas anteriores, das conclusões que delas emergiram. Pequenos resumos, aqui e ali, contribuem para que, ao final de leitura, seja possível alinhavar com clareza as teses defendidas e os fatos que as sustentam.

São exemplos disso os quadros seguintes:

  1. 64-65 (capítulo 4)

“Em resumo devemos concluir que:

  • No seu desenvolvimento ontogenético o pensamento e a linguagem têm raízes diferentes.
  • No desenvolvimento linguístico da criança podemos estabelecer com toda certeza uma fase pré-intelectual – e no seu desenvolvimento intelectual podemos estabelecer uma fase pré-linguística.
  • À determinada altura estas duas trajetórias encontram-se e, em consequência disso, o pensamento torna-se verbal e a linguagem racional.”

Quadros semelhantes encontram-se nas páginas 61 e 130 a 139; no entanto, o próprio texto se estrutura continuamente de modo a possibilitar tais sínteses.

. Conteúdo dos capítulos

De modo geral, podemos dizer que o núcleo do texto se encontra nos capítulos 4, 5 e 6:

  1. As Raízes Genéticas do Pensamento e da Linguagem
  2. Gênese e estudo experimental da formação dos Conceitos
  3. O desenvolvimento dos conceitos científicos na infância.

Os capítulos 1, 2 e 3 constituem a situação do problema a ser examinado, da questão metodológica e a análise de algumas das soluções mais difundidas, revelando suas insuficiências:

  1. O Problema e a Abordagem
  2. A Teoria de Piaget sobre a linguagem
  3. A Teoria de Stern sobre o desenvolvimento da linguagem

O capítulo 7 – Pensamento e Linguagem – é como uma retomada, desde o início, e tem o efeito de uma síntese necessária. Não se resume nisto, mas serve a esta finalidade.

Especialmente importantes para o trabalho do professor na sala de aula são os capítulos 5 e 6. Do capítulo 5 destacamos a elucidação das fases na formação dos conceitos com a caracterização do percurso que conduz do sincretismo aos complexos e, posteriormente, aos conceitos. A análise pormenorizada de cada fase, como no caso dos complexos que se subdividem em 5 tipos, encadeados, ligando o sincretismo aos conceitos, é bastante reveladora. No capítulo 6 há muitas afirmações decisivas; destacamos uma delas:

“Pensamos que nossos dados confirmam a hipótese segundo a qual desde o princípio os conceitos científicos e espontâneos da criança… se desenvolvem em sentidos inversos: partindo de pontos muito afastados movem-se em direção um ao outro. Este ponto é o fulcro de nossa hipótese.” (p. 143)

A penetrante análise comparativa do desenvolvimento dos conceitos científicos e espontâneos talvez seja, de fato, o centro de gravidade do livro.

. Tradução: pequenos problemas

Alguns problemas apresentados pela tradução portuguesa não chegam a comprometer a leitura, embora dificultem-na em certos trechos. De modo geral, são inúmeros os pequenos deslizes tipográficos, ortográficos ou de concordância. Na página 18, por exemplo, lemos:

“Estamos em crer que os recentes e grandes passos em frente da linguística se ficam em grande medida a dever a alterações operadas nos métodos de análise empregues no estudo da linguagem” (sic).

Na página 22, temos:

“Enquanto nos faltou um sistema generalizadamente aceite que incorpore todo o conhecimento psicológico disponível, qualquer descoberta factual importante conduzirá à criação de nova teoria conforme aos fatos novos observados.” (grifo nosso)

Na página 88, temos:

“O que guia a criança na construção da coleção era a associação por contraste e não a associação por semelhança.” (grifo nosso)

Na página 153, no trecho

“Mas quando, nas experiências de Piaget, uma criança diz de um objeto que se dissolveu na água porque era pequeno, e de outro que se dissolveu porque era grande…” (grifo nosso)

Onde está escrito “dissolveu”, pode-se compreender a visível contradição com uma mistura natural entre tamanho e peso, aliada ao lapso de um “não”, e tudo seguirá bem.

São coisas menores que não interferem na leitura e talvez nem devessem ser aqui registradas, como o são as dezenas de “peculiariedades” ao longo do texto.

. Argumentação: análise de um exemplo

No que diz respeito à argumentação, o texto é, em geral, muito bem cuidado. Cada problema é claramente situado, as experiências necessárias para a verificação das hipóteses são imaginadas, realizadas e as conclusões decorrentes são articuladas logicamente com as questões iniciais, propiciando respostas e conduzindo a novos problemas. No entanto, a argumentação apresentada nas páginas 178, 179 e 180 deixou algumas dúvidas quanto à consistência. A hipótese a ser testada era a seguinte:

“Se a fala egocêntrica da criança resulta do seu pensamento egocêntrico e da insuficiência de socialização, então qualquer debilitamento dos elementos sociais no quadro experimental, qualquer fator que aumente o isolamento da criança relativamente ao grupo conduzirá necessariamente a um súbito aumento do discurso egocêntrico.”

Os experimentos foram conduzidos e deparamos com o seguinte trecho:

“Chegamos à conclusão que tal (a insuficiência de socialização) levava invariavelmente a um abrandamento do discurso egocêntrico. É, portanto, lógico supor que o discurso egocêntrico é uma forma que se desenvolve a partir do discurso social…”

Tínhamos a hipótese:

“A insuficiência de socialização acarreta o aumento da fala egocêntrica.”

Notou-se, no entanto, que

“A insuficiência de socialização provocou a diminuição do discurso egocêntrico.”

E concluiu-se que

“O discurso egocêntrico desenvolve-se a partir do discurso social.”

Exagerando um pouco na pintura, é como se tivéssemos a seguinte argumentação:

Hipótese: “A diminuição da carga de trabalho acarreta um aumento no peso”

Notamos que: “Uma pessoa trancada em um quarto isolado, sem trabalhar, por vários dias, diminui de peso”

E concluímos que “Na verdade, o trabalho faz aumentar o peso”.

Não parece uma argumentação convincente.

. Vygotsky e Piaget

As críticas  ao trabalho de Piaget são constantes, estando embutidas na colocação inicial do problema, desfilando explicitamente no capítulo 2 e espraiando-se por todo o texto. Não é uma crítica cega, sectária, demolidora, nem poderia sê-lo, dadas as dimensões do oponente. No entanto, é uma crítica radical no sentido de que atinge, realmente, a raiz dos problemas decorrentes dos pressupostos piagetianos. Observemos uns poucos exemplos. Na página 110 assinala Vygotsky:

“Quando Piaget diz que nada é mais importante para o ensino eficaz do que um conhecimento exaustivo do pensamento espontâneo da criança move-o aparentemente a ideia de que, tal como é preciso conhecer um inimigo para poder vencê-lo no combate, assim é preciso conhecer o pensamento da criança.”

Sobre os conceitos não-espontâneos em Piaget, ele afirma:

“Se as suas concepções sobre os conceitos não-espontâneos fossem corretas, seguir-se-ia delas que um fato tão importante para a socialização do pensamento como a aprendizagem escolar não tem qualquer relação com o processo de desenvolvimento interno. Esta incoerência é o ponto fraco da teoria de Piaget, tanto do ponto de vista teórico como prático.” (p.114)

Sobre a possibilidade da universalização dos resultados experimentais obtidos por Piaget, encontramos na página 38:

“Piaget observou crianças enquanto brincavam em determinado jardim infantil e os seus coeficientes só são válidos para este meio infantil particular. Quando a atividade das crianças é exclusivamente constituída por jogos, é acompanhada por um grande manancial de solilóquios.”

E um pouco mais adiante:

“No prefácio à edição russa do seu livro, Piaget admite que é necessário comparar o comportamento das crianças de ambientes sociais diferentes para podermos  estabelecer a diferença entre o social e o individual no seu pensamento.”

. O caso da Matemática

Com relação especificamente à Matemática, o texto faz apenas referências esparsas, de modo geral interessantes, embora sem aprofundamentos. Por exemplo, na página 151, temos:

“Os conceitos algébricos representam abstrações e generalizações de certos aspectos dos números e não dos objetos, significando, portanto, uma nova trajetória de desenvolvimento – um novo e mais elevado plano de pensamento.”

Na página 168, no entanto, desliza para um desvio que conduz a uma concepção estereotipada da Matemática, atualmente ultrapassada:

“A correção absoluta só se consegue para lá da linguagem natural, na Matemática. A nossa linguagem quotidiana oscila constantemente ente os ideais da harmonia matemática e os da harmonia imaginativa.”

É provável que Vygotsky não tivesse tido contato com os resultados de Gödel (1931) sobre as incertezas da Matemática, sobre a falência dos ideais de perfeição formal. Muitos matemáticos ainda hoje não têm consciência das implicações dos trabalhos de Gödel, das insuficiências crônicas dos formalismos. A correção absoluta não passou de um sonho e seguramente não existe, nem mesmo na Matemática. Isso, no entanto, não compromete o que se pretendia afirmar; pelo contrário, reforça-o.

. Conclusão

Para concluir, uma imagem sobre uma imagem pode resumir uma avaliação crítica sobre o texto de Vygotsky. O interessante exemplo analisado na página 168 sobre a versão russa da fábula de La Fontaine, “A Cigarra e a Formiga” é eficiente no que pretendia comunicar, mas escorrega no pequeno comentário inserido sobre a “adequação da feminilidade para simbolizar uma atitude leviana e despreocupada”. Sem dúvida, sobre tal comentário deve desabar a ira das feministas, mas ele é periférico e o exemplo atinge a meta pretendida. Fica esta impressão final sobre o texto de Vygotsky: precioso no atacado, com deslizes no varejo.

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