Ensino Híbrido ou Anfíbio?

 Nílson José Machado www.nilsonjosemachado.net

A expressão “ensino híbrido” está ocupando todos os espaços na comunicação em tempos de pandemia. Grosso modo, refere-se apenas a uma mistura de ensino presencial e à distância, mas é preciso cautela em seu uso: trata-se de uma metáfora infeliz. Como no caso da “educação à distância”, a expressão pode confundir – e em geral confunde – alhos com bugalhos.

Comecemos com a ideia de distância. No sentido mais frequente, o termo “distância” remete imediatamente à distância física ou geográfica. Nesse sentido, é possível dizer que a educação à distância sempre existiu, uma vez que entendemos e aceitamos que nem tudo o que aprendemos precisa ocorrer na presença física de um professor. A ideia de “lição de casa”, ou de “dever de casa” traduz bem a complementaridade fundamental entre as ideias de ensino presencial e à distância física.

Mas a ideia de distância é muito mais rica, indo muito além de tal senso comum. Ela pode se referir à distância entre os significados distintos de um mesmo termo, ou à distância entre os modos como diferentes pessoas pensam sobre determinados temas. Afinal, posso me sentir mais próximo de um japonês com o qual troco e-mails diariamente, por exemplo, sobre temas de interesse comum, do que de meu vizinho ao lado, fisicamente próximo, mas muito distante em termos de interesses pessoais. Internamente à própria Matemática, existe uma disciplina intitulada Topologia (topos quer dizer lugar, em grego) que trata da ideia de proximidade, da noção de vizinhança em sentido amplo, não apenas no sentido físico ou geográfico.

O fato é que, nesse sentido mais amplo de distância, não existe o que seria uma “educação à distância”: a ausência de proximidade conduz a uma deficiência fundamental na ideia de educação. Uma educação consistente pressupõe que professores e alunos se sintam próximos, criem sistemas de proximidades. Para funcionar adequadamente, a organização da escola não pode prescindir, pois, da aproximação entre alunos e professores.

Como compreender, então, a força da expressão “educação à distância” em ambientes impregnados de tecnologia? O que a tecnologia trouxe de mais importante em termos de inovação não foi o elogio acrítico do “ensino à distância, mas sim a criação de múltiplos sistemas de proximidades entre pessoas ou fatos geograficamente afastados. Sobretudo após o advento das redes informacionais, foram construídas diversas formas e recursos para nos sentirmos próximos uns dos outros, mesmo quando fisicamente distantes. A cautela necessária com a expressão “educação à distância” pode ser sintetizada no fato de que ela somente se justifica quando entendemos a distância nesse sentido mais restrito de distância física, geográfica; quando ampliamos a ideia de distância, a expressão traduz um abuso de linguagem e é difícil de se sustentar…

A pandemia nos afastou fisicamente, ao mesmo tempo em que fomentou atividades on line, em que, sincronicamente ou não, buscamos meios de nos aproximar dos outros. Existem sinais, no entanto, de que, mesmo quando ela se for, o recurso das atividades on line não desaparecerá. Por diversos caminhos, confluímos para uma situação em que a organização da escola e das atividades de ensino deverá assumir uma forma mista, misturada, híbrida, no sentido de conjuminar atividades presenciais e atividades à distância física. Sutilezas e matizes ainda ocupam lugar no cenário, distinguindo atividades on line sincrônicas ou assincrônicas, e por aí vai. Sinteticamente, no entanto, a conclusão parece simples: um mix entre atividades presenciais e à distância física tenderá a ser a regra. Um curso 100% presencial parece um desperdício, e um curso 100% à distância física soa como uma enganação; o busílis da questão é o design do curso, é a composição de um mix equilibrado.

É aí que começa o cuidado para se evitar outro abuso no uso da expressão “ensino híbrido”. Entendê-la apenas como sinônimo de ensino misto, uma mistura de ensino presencial com o ensino à distância, pode conduzir a uma heterogeneidade genérica pouco esclarecedora. Afinal, não parece minimamente aceitável embaralhar as funções das diversas formas de ensino sem considerar suas peculiaridades essenciais. É preciso dar ao presencial o que é do presencial, sem mitigar, nem minimamente, o enriquecimento que as atividades on line propiciam. Em outras palavras, ao pretender se tornar uma panaceia, o “ensino híbrido” se banaliza e se esvazia.

Uma pitada de cautela, pois, é necessária na exploração da expressão “ensino híbrido”. Como metáfora inspiradora das ações educacionais ela pode ser associada a situações bem pouco interessantes, quando consideramos o significado do hibridismo no terreno da Biologia. Uma dessas comparações desagradáveis nas relações com os animais é a esterilidade como sina dos resultados dos cruzamentos. Da cópula entre o cavalo e a jumenta, nasce o burro ou a mula, que não herdam a capacidade de se reproduzir. Ninguém gostaria de transportar metaforicamente tal característica para o terreno das relações entre os ensinos presencial e à distância.

Eis aí um cenário a partir do qual, na construção de uma epistemologia consistente, a expressão “ensino híbrido” poderia ser substituída pela expressão e pela ideia de “ensino anfíbio”. Afinal, se uma metáfora representa, como sugeriu Borges, uma “simpatia secreta entre conceitos”, então a palavra “anfíbio” parece muito mais fecunda, simpática e empática do que a palavra “híbrido”. Ela pode traduzir uma metáfora mais inspiradora e sugestiva que a esterilidade do hibridismo. De fato, aqui, a etimologia é muito mais generosa. A palavra “anfíbio” tem origem grega: anphibion deriva de anphi e de bion, ou seja, aquilo que tem dois modos de ser, ou dois tipos de vida. Na natureza existem mais de 500 tipos de animais anfíbios; muito conhecido é o sapo, que vive entre os ambientes aquosos e terrestres. Uma característica metaforicamente interessante é o fato de que os sapos nunca se afastam muito da água, que é o meio em que usualmente se alimentam e se reproduzem. As relações entre o ensino presencial e o ensino à distância, seriam, pois, similares às relações entre os ambientes aquoso e terrestre na vida dos anfíbios. Aproveitemos os elementos terrestres que nos facilitam a vida, mas, como os sapos, não temos dúvidas, não podemos nos afastar muito da água.

O ensino presencial é essencial para a educação como a água para a vida. Mesmo metaforicamente, longe de nós a esterilidade do hibridismo. Que viva uma educação anfíbia, que viva a água!!

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