O incrédulo diz: “é preciso ver para crer”. O crente afirmará o oposto: “é preciso crer para ver”. A Ciência aproxima-se mais da primeira afirmação; a Religião situa-se em sintonia com a segunda. Algumas considerações sobre as duas perspectivas podem aproximá-las tanto quanto o ovo e a galinha. A caracterização do conhecimento como uma crença verdadeira justificada, associada a uma valorização do método de investigação, põe em destaque as percepções sensoriais na construção do conhecimento. Ainda que a concepção hegemônica de conhecimento objetivo deixe as percepções sensoriais na antessala do edifício científico, limitando o adjetivo “objetivo” ao conhecimento teórico, a experimentação é necessária e crucial. Caprichosamente, a etimologia reforça a importância do ato de ver na construção científica: theoria é uma palavra de origem grega que significa “visão”. No outro extremo do racionalismo científico, a perspectiva acentuadamente idealista de Berkeley, que era bispo, assegura que “ser é ser percebido ou perceber”. O mundo seria o conjunto de nossas percepções. Para evitar a aporia que consistiria na negação da existência de algo que tenha passado despercebido por todos nós, recorria-se à Religião: todas as coisas existiriam, independentemente de nós, uma vez que constituiriam frutos da percepção de Deus. Retornando à polarização inicial, o pensamento religioso enfatiza que é preciso crer para ver. Atribui-se frequentemente tal expressão ao pensamento de Santo Agostinho, ainda que pareça mais plausível a associação de pensamento similar a Tertuliano: credo ut intelligam, non intelligo ud credam (“creio porque compreendo”, e não “compreendo porque creio”). Também se atribui a Tertuliano a máxima credo quia absurdum, ou seja, “creio porque é absurdo”, ou, mais adequadamente, “creio porque é inaudito”; não fosse esse o caso, um argumento lógico me convenceria. Outro aforismo de origem religiosa afirma, no mesmo sentido, que “A fé é assim: primeiro você põe o pé; depois, Deus põe o chão”. Diz a lenda que, na primeira versão do filme Os dez mandamentos, as águas do mar Morto somente teriam propiciado a abertura para a passagem dos seguidores de Moisés imediatamente após o primeiro fiel dar o primeiro passo para a travessia; não pude conferir a realidade de tal pormenor, que não é encontrado em versões posteriores. O dramaturgo italiano Silvio Pellico põe mais lenha na fogueira ao afirmar que “para crer, é preciso querer crer”, o que significa que a crença seria uma decisão de cada um de nós. Algo similar pode ser encontrado em Erich Fromm, ao afirmar que a fé é um traço do caráter de cada pessoa. Quando, para qualquer um de nós, o mundo parece perder o sentido, tudo fora de nós permanece inalterado, a transformação se dá em nosso âmago. Ninguém de fora pode nos garantir que o mundo faz sentido: assumir ou não tal perspectiva é uma decisão pessoal, fruto de nossa fé, fé no sentido.
******SP 1-11-2017
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