Não vivemos conceitualmente. Conceitos como os de tempo, de consciência, de pessoa, de liberdade, de dignidade, de vida, esvaem-se entre nossos dedos, e isto não chega a ser um mal. A vida vivida conceitualmente seria muito chata. Vivemos e nos alimentamos das ideias que temos ou construímos sobre todos os temas, e somente algumas poucas dessas ideias conseguimos explorar no nível dos conceitos. Conceitos são definidos precisamente, determinam classes de equivalência, ordenam o universo correlato, inspiram relações de causalidade. Quando perguntamos a uma pessoa “Como está?” dificilmente buscamos ou apreciamos uma resposta conceitual.

Naturalmente, a palavra “conceito” costuma ser utilizada em sentido mais leve, como sinônimo de “noção”, “ideia” ou até mesmo “opinião”. Em várias de suas músicas, Raul Seixas faz menção a uma rejeição à vida conceitual referindo-se, explícita ou tacitamente ao peso do conceito: “Prefiro ser essa metamorfose ambulante do que ter aquela velha opinião formada sobre tudo”. Todos temos opiniões a respeito de quase tudo. Conversamos, trocamos opiniões, argumentamos para defender as que temos, mas somente algumas dessas opiniões avançam um pouco no vasto, difícil, fecundo e sedutor terreno das noções pré-conceituais, e somente um pequeno número delas atinge o nível dos conceitos. Um elemento complicador no esclarecimento das relações entre o pré-conceitual e o conceitual é o fato de que os conceitos se estruturam em teorias, inicialmente ingênuas ou locais, mas sempre ávidas por formalizações, extensões e/ou generalizações.

A passagem do pré-conceitual ao nível do conceito é sutil, é não trivial, envolvendo riscos e apostas. A afoiteza e/ou a precipitação em tal intento podem nos levar a derrapar em cascas de banana e dar origem à negatividade da noção de pré-conceito. O cuidado para evitar tal derrapagem, no entanto, não pode nos paralisar, nem nos fazer rejeitar in limine a viagem em busca do conceito. Entre filósofos importantes da Escola de Frankfurt, como Adorno, Gadamer ou Horkheimer, a palavra “pré-conceito” não apresenta apenas sua conotação negativa, significando também os esquemas anteriores aos conceitos, fundamentais para a orientação da ação. São como uma luz um tanto dispersa, não focalizada como a razão iluminista pressupõe, mas, ainda assim, esclarecedora. Evitar sistematicamente a busca do conceito seria uma forma de pré-conceito, certamente negativo.

É aqui, justamente, que um insight muito interessante da lavra de Adorno pode fazer par com a rejeição sistemática de Seixas a teorias que representam “opiniões formadas sobre tudo”: trata-se da noção de constelação. Adorno restaura da etimologia a ideia mais geral de teoria como visão, destacando que um conceito, por mais que alimentado pela estrutura de uma teoria, é insuficiente como recurso para iluminar o objeto que se deseja conhecer. Para tanto, seria sempre conveniente o recurso a uma constelação, a uma reunião de elementos que, a despeito de serem pré-conceituais, constituem uma configuração em que se apoiam mutuamente, iluminando, mesmo difusamente, os objetos que estão sendo estudados.

Resumindo, nós, humanos, podemos viver muito bem, mesmo sem o conceito de vida ou de tempo, ou de ser humano… Vivemos buscando por tudo isso: pela consciência, pela felicidade, pelo significado da vida, mas não nos sentimos paralisados pela eventual ausência de conceitos a respeito de temas tão complexos. Reunimos luzes difusas, com foco disperso, e buscamos iluminar nossos passos com uma teoria mínima, como nos sugere Adorno, com os aforismos de sua inspiradora Minima Moralia.

É quase automática a lembrança de outra música de Raul Seixas:

“Quem não tem colírio, usa óculos escuros…”

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