Nílson José Machado

 1 – Sobre espelhos, rostos e crenças

Ver para crer é uma máxima ambígua: também se poderia afirmar que é preciso crer para ver.

Nada traduz mais legitimamente a identidade de uma pessoa do que seu rosto. Não duvidamos de sua existência e até concordamos: os traços fisionômicos revelam a alma, os sentimentos mais profundos. Mas ninguém pode ver diretamente o próprio rosto, como observamos nossas mãos ou nossos pés; só temos acesso a ele recorrendo a intermediários, como fotos ou espelhos.

Muitos objetos científicos somente podem ser estudados de modo indireto, com a ajuda de instrumentos que registram suas presenças por meio de determinados efeitos; os reflexos que determinam em outros objetos são considerados suficientes para caracterizar sua existência.

Situações análogas ocorrem em questões atinentes à espiritualidade e à religiosidade. Nas complexas relações entre o humano e o divino, entre o sagrado e o profano, nem sempre nos damos conta das mensagens indiretas, ou de como a natureza funciona como um espelho de Deus.

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 2 – Ética, Talião e o juiz de futebol

A tentação é forte: fazer aos outros o que eles nos fazem. Bateu, levou. Olho por olho, dente por dente. Lei de Talião. Espelho.

A aparente consonância com a Regra de Ouro – Não faça aos outros aquilo que não gostaríeis que fizessem a ti – serve de conforto. Mas a simetria não conduz à Ética. Mesmo que todo mundo roube, isto não se tornará justo. A Ética pressupõe a decisão unilateral, a assimetria. Uma pessoa íntegra não altera seus juízos, mesmo entre lobos. Em regimes democráticos, o recurso à desobediência civil é o último reduto da integridade pessoal.

Uma situação indiciária é a das leis que não consideramos justas, mas das quais procuramos tirar proveito porque “temos direito”. Quotas, aposentadorias, variados benefícios legais, mesmo rejeitados no nível do discurso, são reivindicados na prática. A Ética se esvai em conveniências.

Como dizia mestre José Mário Azanha, o juiz de futebol não é desonesto apenas quando favorece nosso adversário: também o é quando rouba para nosso time.

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3 – Palavras espelhadas: Autoridade e responsabilidade

Em alguns contextos, é difícil argumentar sobre a necessidade da autoridade para viabilizar a vida em comum. A associação frequente e indevida entre autoridade e autoritarismo é imediatamente ativada, contaminando o discurso e inibindo a assertividade em certos temas.

Um antídoto para tal contaminação é a lembrança de que não existem duas palavras mais inextricavelmente ligadas do que autoridade e responsabilidade. Adentra-se o cenário de um discurso competente sobre a autoridade mais facilmente pela porta da responsabilidade. Quem reluta em assumir a responsabilidade pelas ações de outros nunca poderá exercer qualquer autoridade sobre eles.

A ideia de responsabilidade é um recurso especular absolutamente consistente, uma vez que não existe “autoridade irresponsável”: um descolamento entre as duas noções provoca automaticamente uma destruição mútua.

Uma reflexão sobre a função da autoridade, em qualquer nível, pressupõe, pois, um debruçar-se necessário sobre a responsabilidade inerente.

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4 – Palavras espelhadas: Dádiva e laço

O alerta foi dado por Mauss, em seu seminal Ensaio sobre a Dádiva (1927): a despeito da crescente mercantilização das relações sociais, certos “bens” precisam continuar a circular de forma dadivosa. A vida, a palavra, o voto, a confiança são valores que não circulam por meio de relações de compra e venda. O conhecimento também é reconhecido como um valor que não se deixa apreender completamente pelas relações mercantis.

Mas o elogio da dádiva é visto de modo enviesado pelos defensores do mercado: um discurso sobre o tema parece antiquado ou restrito ao terreno religioso.

Uma especular porta de entrada para um discurso sobre a dádiva pode ser o tema da criação de enlaces humanos, inerentes às relações dadivosas. O motor da dádiva é a criação de laços com os outros: um presente simboliza tal busca e é impossível conceber um ser humano sem vínculos de qualquer natureza. 

Sem dúvida, é mais fácil falar sobre laços do que sobre doações materiais, frequentemente corrompidas pelo deus mercado.

___________________________________Nílson 18/nov/2014

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