MESTRE
ALFREDO BOSI:
Um olhar eloquente, uma assertividade serena
Prólogo
Que dizer de Mestre Alfredo Bosi, de quem não posso falar senão na perspectiva do aluno, continuamente por ele alimentado, ainda que de modo tácito, sem vínculos formais?
Trabalhei intensamente, sob sua coordenação, entre 1991 e 1994, no Programa Educação para a Cidadania, criado por ele no IEAUSP. Em tal Programa, que coordenava como um maestro, foram gestadas propostas relevantes para a revisão da Constituição Federal realizada em 1993.
Fundada apenas em sua excepcional competência, sua autoridade era exercida de modo absolutamente tranquilo, com uma sutil expressão corporal, um delicado movimento no olhar. Quando baixava discretamente o olhar, a gente se perguntava: “onde foi que erramos?”
Com ele aprendemos, a cada atividade realizada, muitas coisas simples,
“simples como a água e o pão, como o céu refletido nas pupilas de um cão”,
segundo versos da lavra do saudoso José Paulo Paes, com quem Mestre Bosi manteve fecundos laços poéticos, como veremos mais adiante.
Desde muito cedo mestre Bosi nos mostrou que, para cumprir sua função formadora, ou de conscientização, a crítica não precisava ser ácida, cítrica. Aprendemos que, assim como a consciência se constitui como uma meta vontade, ou uma vontade de ter certas vontades e não outras, quando a crítica emana da humildade que somente a sabedoria provê, ela se transforma em pura literatura, em meta literatura: na maior parte dos textos do Mestre tal característica salta aos olhos.
Aprendemos que, tal como a igualdade se relaciona simbioticamente com a diferença, a verdade é parceira da tolerância, e, ainda que cortejada por todos, a verdade não tem dono. Aprendemos que a vida não é um conto de fadas, que o bem e o mal passeiam de mão dadas, e que assumir posições nítidas no que se refere aos valores fundamentais não nos obriga a ser binários, ou extremistas.
Aprendemos ainda que o centro de gravidade de uma Universidade com alma jamais poderia se afastar do universo da Cultura, mesmo quando atraída pelas mais sedutoras tecnicidades, ou pela ideia de formação profissional em sentido mais estrito… entre tantas outras lições…
Bosi e a Educação
…Em meio a tantas lições, dimensões e qualidades da figura ímpar que foi Mestre Bosi, buscar aqui o inaudito parece até um absurdo; tentemos apenas, apesar do deleite da reiteração, não ser demasiadamente repetitivos.
Restringindo-nos apenas ao terreno da Educação, dois aspectos da personalidade de Mestre Bosi sobressaem: a eloquência do olhar e a serenidade assertiva, ou a assertividade serena.
A expressividade do olhar do mestre animava tacitamente nossos projetos, temperando os mais afoitos com humildade e cultura. Especificamente sobre o olhar no texto machadiano, escreveu um livro particularmente interessante (Machado de Assis – O enigma do olhar), que poderia ser visto com um talvez involuntário, mas inevitável sentido autobiográfico. Arriscamos a conjecturar que o olhar de Machado teria muito a ver com o olhar de Mestre Bosi, mas não é este o ponto que queremos aqui considerar.
O que ora nos interessa destacar, numa perspectiva educacional, na obra de Mestre Bosi, é o fato de que o olhar de que o mestre nos fala está em singular sintonia com uma das mais fecundas ideias do filósofo Hans-Georg Gadamer (1900-2002). De fato, em Verdade e Método, Gadamer elabora a noção de “fusão de horizontes”, que se refere a uma busca de sintonia, de uma racionalidade comum a diferentes pontos de vista. Não se trata da busca de unidade de pontos de vista, nem mesmo da unidade de olhares, que expressam vida em seus movimentos. Trata-se de reinstalar a trilha que conduz da doxa à episteme, da tentativa de conversão à conversa amistosa, da busca do convencimento à ideia de vencer juntos. A fusão de horizontes em Gadamer representa, talvez, a mais efetiva concepção de que dispomos para semear o entendimento entre as pessoas e combater a violência no mundo.
Bosi e Gadamer
Algumas linhas da lavra de Mestre Bosi em seu enigma machadiano podem contribuir para clarear a aproximação Bosi/Gadamer, acima arriscada:
“Olhar tem a vantagem de ser móvel, o que não é o caso, por exemplo, do ponto de vista. O olhar é ora abrangente, ora incisivo. O olhar é ora cognitivo e, no limite, definidor, ora é emotivo ou passional. O olho que perscruta e quer saber objetivamente das coisas pode ser também o olho que ri ou chora, ama ou detesta, admira ou despreza. Quem diz olhar diz, implicitamente, tanto inteligência quanto sentimento.”
Como se vê, em Bosi, é a mobilidade do olhar que o distingue visceralmente da perspectiva estática do ponto de vista. O olhar está para um filme assim como um ponto de vista está para uma foto, ou mesmo um mapa. Ao tratar das redes de significados, respondendo a críticas sobre o caráter estático dos mapas de relevâncias construídos sobre as redes, Pierre Lévy sugeriu a ideia de cinemapas, ou de mapas em permanente estado de atualização, que funcionariam como protofilmes, na antessala das narrativas. A tecnologia, se, por um lado, transformou e fragmentou o tempo e as narrativas, por outro, busca reconstruir no olhar o controle da identidade, dos espaços e dos tempos das pessoas.
Ao tratar da articulação dos significados, na construção do conhecimento, partindo dos pontos de vista dos sujeitos, Gadamer explora o fato de que dois pontos de vista sobre um mesmo objeto, percebidos por duas pessoas diferentes, são geralmente expressos a partir de duas linhas de horizonte, ou duas racionalidades distintas. O que se vê, numa ou noutra perspectiva, são imagens distintas do mesmo objeto. Não se trata, educacionalmente falando, de procurar confrontar as imagens, tendo em vista reduzi-las a uma só percepção visual: temos visões diferentes e gostamos disso. Trata-se, isto sim, de reduzir as duas linhas do horizonte a uma só: as duas racionalidades devem convergir. Continuam, no entanto, a produzir duas imagens distintas do mesmo objeto. A linha de horizonte comum nasce de uma fusão entre as duas linhas individuais; o processo é nomeado de “fusão de horizontes”. Na realização de tal fusão, o processo pode parecer complexo, ou mesmo incompreensível, pelo menos se pensamos apenas na rigidez das diferentes perspectivas. Quando se pensa, no entanto, no movimento do olhar, pode-se deslizar suavemente as duas linhas de horizonte iniciais, ajustando tais linhas até fundi-las, sem confundi-las, garantindo-se uma racionalidade comum, na partilha de perspectivas e de sentidos, na construção dos significados.
Bosi e a simbiose Descartes/Vico
No terreno da Educação, uma fecundação fundamental realizada por Mestre Bosi foi a consideração das ideias de Vico na construção do conhecimento. Ao situarmos a língua materna em tal cenário, destaca-se a irrelevância a ela atribuída por Descartes, em contraposição ao papel absolutamente decisivo a ela reservado por Vico. Como se sabe, para Descartes, a Matemática era a “língua natural” da Ciência, enquanto a língua seria o lugar das imprecisões, das ambiguidades, das incertezas. Vico reconhece as limitações, ou mais sensatamente, as características “negativas” apontadas por Descartes, mas caminha na mesma direção em sentido oposto. Tendo por base uma inspirada concepção de História, Vico considera que, para fazer Ciência, é necessário partir daquilo que a língua nos oferece, cultivando as características de expressividade e de compreensão, com a consciência crescente dos desvios e das armadilhas infra lógicas, mas sem retroceder um milímetro na proclamação da importância da língua materna na construção do conhecimento. Com suavidade, como de costume, mas com reiterada explicitação em diferentes contextos, particularmente no último capítulo de O Ser e o Tempo da Poesia, Mestre Bosi semeia uma epistemologia que tem as ideias de Vico como fundamento, cultivando uma simbiose possível – e necessária – com aspectos importantes do pensamento cartesiano.
Bosi e Paes
A comunhão de ideias estéticas, éticas e políticas, associadas a uma amizade e um profundo respeito pessoal uniram Mestre Bosi e o poeta José Paulo Paes, incluindo-se a convivência contínua, nos anos iniciais da década de 1990, no período em que o poeta foi Professor Visitante no IEAUSP. Um pequeno exemplo que pode representar concretamente os efeitos da simbiose Vico/Descartes nas poéticas de Mestre Bosi e de José Paulo Paes é o poema Pavloviana, publicado por Paes no livro Um por todos, prefaciado por Mestre Bosi:
PAVLOVIANA
a comida, a sineta, a saliva
a sineta, a saliva, a saliva
a saliva, a saliva, a saliva
o mistério, o rito, a igreja
o rito, a igreja, a igreja
a igreja, a igreja, a igreja
a revolta, a doutrina, o partido
a doutrina, o partido, o partido
o partido, o partido, o partido
a emoção, a ideia, a palavra
a ideia, a palavra, a palavra
a palavra, a palavra, A PALAVRA
Pois é, poesia. Nada mais cartesiano, nada menos cartesiano, com muito viço, com muito Vico.
A assertividade de Bosi
Com sensibilidade literária, Mestre Bosi nos mostra a cada olhar como mobilizar a força e a suavidade de seu universo de crítico, para convergir simbioticamente e articular-se naturalmente com o rigor das articulações de Gadamer, na busca da verdade com método. Assim, na conversa que não quer, em princípio, nem converter, nem convencer, mas apenas partilhar, a fusão de horizontes parece o instrumento teórico por excelência para promover a aproximação entre as pessoas, na busca de um sentido para a vida.
Reiteremos, pois, que, o olhar entendido como uma dinâmica de perspectivas, como uma possibilidade de vida e movimento, associado à assertividade suave, que não busca o conforto da zona cinzenta, mas não produz marolas desnecessárias entre visões extremistas aproxima Mestre Bosi do pensamento rigoroso de Gadamer. A serenidade assertiva e a humildade sincera, a máscara sem cera que traduz a transparência possível em territórios de integridade e de civilidade, sem transigência, mas sem extremismos, conduz a obra do Mestre, na alimentação de seus inúmeros alunos.
Reiteremos aqui o que pode parecer um pormenor, mas é um indício definidor da personalidade do mestre que nos deixou: Mestre Bosi nunca semeou franco atiradores. Com seu exemplo de vida nos ensinou continuamente a criar espaços de resistência impregnados de afetividade, como bem o ilustra o fecundo espaço do IEAUSP. Por tudo isso, Mestre Alfredo Bosi é o intelectual que representa com mais rigor e com mais vigor o espírito de uma universidade viva e produtiva, mas com alma.
Coda: Bosi, a fragmentação e os metavalores
Caminhando para uma conclusão, tentemos situar Mestre Bosi no cenário atual de excessiva fragmentação das disciplinas, com a consequente diluição dos significados e dos valores. Mesmo redigidos antes da aurora da internet, os textos de Mestre Bosi registram amplamente seu desconforto com tal fragmentação. Alguns exemplos eloquentes são apresentados a seguir, todos extraídos de sua obra prima Dialética da Colonização (1992).
Com extrema humildade, afirma que:
A massa de bits disponíveis sobre um número alto de matérias exploráveis gera um cogumelamento de sub-áreas de especialização. Folhear uma revista de difusão científica, o catálogo de uma grande editora americana ou francesa, ou o elenco de disciplinas e eventos de uma universidade moderna produz vertigens e depressões cognitivas.
Com a autoridade que emana de sua competência, dá um pequeno desconto em sua serenidade assertiva e registra que:
Há teses universitárias que são fieiras de alusões e citações: as melhores, padecem de uma erudição turística e carente de nexos lógicos; as piores fazem concorrência ao samba do crioulo doido.
Com espírito crítico criador, ensaia um diagnóstico para ir além da denúncia:
O discurso sobre esse saber em migalhas e sobre as fraturas que cortam o terreno da cultura superior levou-nos a contemplar uma situação espiritual de descentramento que se poderia chamar também de recusa da totalidade. Essa atitude tende, pela sua repetição tantas vezes inconsciente, a virar monotonia ideológica.
E anuncia uma luz no fim do túnel ao explicitar que:
O que motiva o trabalho do conhecimento é a vontade de valor. Só o que vale, vale a pena…Os in-formes em si e por si mesmos não produziriam uma teoria nova do real, ou daquela zona do real que interessa a alguém perscrutar. Só o sentimento do valor guia o esforço de compreender os homens e as coisas, elege temas, bebe na fonte dos dados originais…E, para que a ciência resultante não regrida a simples máscara do interesse que a motivou, faz-se ainda necessária a vigência de um metavalor, a vontade de verdade, que torna o sujeito honesto em face do seu objeto.
De alguém que transpirava valores em suas ações ordinárias, não se esperava menos do que isso. A consciência sobre os valores conduz naturalmente aos metavalores, e a vontade de verdade é um deles. Nas obras do Mestre Bosi outros metavalores são onipresentes, como a fé, a integridade, o equilíbrio. Por tudo isso, é muito pouco dizer ao mundo, a um tempo, de sua permanência em nosso pensamento, e da imensa falta que ele nos faz.
******25/08/21
No comment