Introdução: Currículos, fragmentação, ideias fundamentais
Um currículo tem a função de mapear os temas/conteúdos considerados relevantes, tendo em vista o tratamento e a articulação das informações disponíveis, e a construção do conhecimento, em suas diferentes vertentes. Cada disciplina que o compõe tem um programa, que estabelece os temas a serem estudados, delimitando seu território, ao mesmo tempo em que oferece vias de integração com as demais, na busca do fim comum que é desenvolvimento das competências pessoais dos alunos. Em cada conteúdo, devem ser identificadas as ideias fundamentais a serem exploradas. Tais ideias constituem a razão do estudo das diversas disciplinas: é possível estudar muitos conteúdos sem uma atenção adequada às ideias fundamentais envolvidas, como também o é a explicitação e a valorização de tais ideias, mesmo tendo por base a exploração de alguns poucos conteúdos.
Nos programas escolares, a lista de conteúdos a serem estudados costuma ser extensa, e às vezes é artificialmente ampliada por meio de uma fragmentação minuciosa em tópicos nem sempre suficientemente significativos. A lista de ideias fundamentais a serem necessariamente exploradas, no entanto, não é tão extensa, uma vez que justamente o fato de serem fundamentais conduz a uma reiteração das mesmas no estudo de uma grande diversidade de temas.
Consideremos, por exemplo, a ideia de proporcionalidade. Ela se encontra presente tanto no raciocínio analógico, em comparações tais como “O Sol está para o dia assim como a Lua está para a noite”, quanto no estudo das frações, nas razões e proporções, no estudo da semelhança de figuras, nas grandezas diretamente proporcionais, no estudo das funções do primeiro grau, e assim por diante. Analogamente, a ideia de equivalência, ou de igualdade naquilo que vale, está presente nas classificações, nas sistematizações, na elaboração de sínteses, mas também quando se estudam as frações, as equações, as áreas ou volumes de figuras planas ou espaciais, entre muitos outros temas. A ideia de ordem, de organização sequencial, tem nos números naturais sua referência básica, mas pode ser generalizada quando pensamos em hierarquias segundo outros critérios, como a ordem alfabética, por exemplo. Também está associada, de maneira geral, a priorizações de diferentes tipos, e à construção de algoritmos.
Outra ideia a ser bastante valorizada ao longo de todo o currículo é a de aproximação, a de realização de cálculos aproximados. Longe de ser o lugar por excelência da exatidão, da precisão absoluta, a Matemática não sobrevive nos contextos práticos, nos cálculos do dia-a-dia sem uma compreensão mais nítida da importância das aproximações.Os números irracionais, por exemplo, somente existem na realidade concreta, sobretudo nos computadores, por meio de suas aproximações racionais. Algo semelhante ocorre na relação entre os aspectos lineares (que envolvem a ideia de proporcionalidade direta entre duas grandezas) e os aspectos não-lineares da realidade: os fenômenos não-lineares costumeiramente são estudados de modo proveitoso por meio de suas aproximações lineares. Funções mais complexas do que as lineares, como as funções transcendentes (exponencial, logarítmica, senos, cossenos, tangentes etc.) são aproximadas, ordinariamente, nas aplicações práticas da engenharia, por exemplo, por funções polinomiais, e mesmo por funções lineares, por meio do Cálculo Diferencial, assim por diante. É importante destacar, no entanto, que, ao realizar aproximações, não estamos nos resignando a resultados inexatos, por limitações em nossos conhecimentos: um cálculo aproximado pode ser – e em geral o é – tão bom, tão digno de crédito quando um cálculo exato, desde que satisfaça a certas condições muito bem explicitadas nos procedimentos matemáticos. O critério decisivo é o seguinte: uma aproximação é ótima se e somente se temos permanentemente condições de melhorá-la, caso desejemos.
Proporcionalidade, equivalência, ordem, aproximação: eis aí alguns exemplos de ideias fundamentais, a serem exploradas nos diversos conteúdos apresentados, tendo em vista o desenvolvimento de competências como a capacidade de expressão, de compreensão, de argumentação etc.
Ideias Fundamentais: reconhecimento, critério
Naturalmente, o reconhecimento e a caracterização de um elenco de idéias fundamentais em cada disciplina é uma tarefa urgente e ingente, constituindo o verdadeiro antídoto para o excesso de fragmentação na apresentação dos conteúdos disciplinares. Não se trata aqui de fixar rigidamente a lista inexorável de tais ideias, mas sim de escolher uma tal lista, como se escolhe o elenco para representar uma peça teatral, ou uma base para descrever um espaço vetorial. Naturalmente, algumas ideias fundamentais estarão presentes em praticamente todas as listas que organizarmos; outras, se alternarão, dependendo do projeto a que servem. Entretanto, é preciso evitar a banalização do que se caracteriza como uma ideia fundamental, e para isso, um critério nítido, para balizar as escolhas, pode ser aqui formulado.
Três características notáveis estão presentes em cada ideia que faz jus ao qualificativo “fundamental”.Em primeiro lugar,qualquer ideia realmente fundamental pode ter seu significado e sua importância explicada apenas com o recurso à linguagem ordinária; se for necessário recorrer a tecnicidades excessivas para se fazer compreender uma ideia, ela pode ser importante, mas não é fundamental. A ideia de energia, por exemplo, é fundamental na Física; ela pode ser apresentada como uma capacidade de produzir movimento, em suas várias formas de manifestação. Naturalmente, não se pretende que o conteúdo se esgote nessa apresentação intuitiva, mas é necessário que por aí se inicie.
Em segundo lugar, uma ideia fundamental nunca é um tema isolado, ou com raros vínculos com outros temas: justamente por se tratar de fundamentos, tais ideias estão presentes, quase sempre de modo bem visível, em múltiplos temas da disciplina, possibilitando, em decorrência de tal fato, uma articulação natural entre os mesmos, numa espécie de “interdisciplinaridade interna”. A idéia de proporcionalidade, por exemplo, transita com desenvoltura entre a aritmética, a álgebra, a geometria, a trigonometria, as funções etc.
Em terceiro lugar,uma ideia realmente fundamental nunca se esgota nos limites da disciplina em que surge: sempre transborda tais limites, articulando as da disciplina em que se origina, ou em relação à qual é referida, enraizando-se em outros territórios disciplinares. A ideia de energia, por exemplo, mesmo desempenhando um papel fundamental na Física, transita com total pertinência pelos terrenos da Química, da Biologia, da Geografia etc. Em razão disso, favorece naturalmente uma aproximação no tratamento dos temas das diversas disciplinas.
Numa frase, ao situar o foco das atenções nas ideias fundamentais de cada disciplina, favorecemos uma tríplice articulação: entre a linguagem matemática e a linguagem ordinária, entre diversos temas intradisciplinares, e entre os conteúdos das diversas disciplinas.
Ideias Fundamentais: um elenco possível
Reiteramos que um desafio a formuladores de currículos ou de matrizes delimitadoras de conteúdos disciplinares a serem explorados em aulas ou em avaliações é a proposta de um determinado elenco de ideias fundamentais, tendo em vista o enraizamento em tais ideias de toda a diversidade de conteúdos disciplinares a serem explorados. Uma observação que pode ajudar na constituição de um tal elenco é o fato de que ideias fundamentais frequentemente ocorrem constituindo pares complementares: equivalência e ordem são um tal par, que é decisivo na construção dos números naturais. Outros pares parecem ser: medida e aproximação; proporcionalidade e interdependência; invariância (regularidade) e variação (taxas);demonstração e aleatoriedade; representação e problematização.
Algumas palavras já foram registradas anteriormente sobre as ideias de Equivalência, Ordem, Proporcionalidade e Aproximação; ainda que de modo igualmente sucinto, segue uma referência às demais ideias citadas.
Medida
Não parece necessário insistir demasiadamente no caráter fundador da ideia de Medida em Matemática. Ela se encontra na origem da própria ideia de número, constituindo um de seus dois pés, ao lado da contagem, e grande parte da Geometria decorre dela. Grandezas, interdependências, funções, probabilidades, quase tudo pode ser associado à ideia de Medida.
Interdependência
A sentença matemática mais típica é do tipo “se p, então, q”, que representa um germe de interdependência. A própria proporcionalidade é um padrão inicial de interdependência, a ser desenvolvido e generalizado. As funções e as correlações estatísticas podem situar-se nesse terreno
Invariância/Variação
Desde muito cedo, a busca de regularidades, de padrões ou de invariâncias em múltiplos contextos constitui um foco das atenções da Matemática. O estudo das formas de crescimento e de decrescimento, das rapidezes em geral – ou das taxas de variação – pode ser associado a tal par de ideias desde o estudo das funções mais elementares
Demonstração/Aleatoriedade
A ideia de demonstração situa-se no próprio cerne do pensamento matemático. Teoremas são pequenas narrativas matemáticas, a serem apreciadas desde muito cedo, naturalmente aliviadas de preocupações excessivamente formais. A ideia de que nem tudo pode ser determinado causalmente, por meio de frases do tipo “se p, então, q”, conduz ao conhecimento do aleatório, do que é “provável” ou do que pode ser “provado”, mesmo de modo não determinístico, como no lançamento de um dado.
Representação
A Geometria trata da percepção e da representação do espaço. Inicialmente, o espaço físico predomina; aos poucos, a arte e mesmo a rede informacional passam a constituir espaços igualmente representáveis, associando a concretude do mundo real às idealizações de outros espaços. A Álgebra também é um lugar das representações dos números, das operações e das interdependências.
Problematização
Um problema sempre traduz uma ou mais perguntas a serem respondidas, a partir de uma situação-problema, no mundo real ou em algum espaço de representações. Como a linguagem matemática não comporta sentenças interrogativas, o modo de fazer perguntas em Matemática é traduzi-las por meio de uma suposta afirmação envolvendo incógnitas, ou seja, por meio de uma equação. Para ser resolvido, um problema precisa ser equacionado, ou seja, suas perguntas precisam ser traduzidas na forma de um sistema de equações.
Ideias fundamentais e Conteúdos disciplinares
Um simples exercício de associação entre tal lista de ideias e os conteúdos disciplinares a serem ensinados pode ser o seguinte:
Ideias Fundamentais | Conteúdos disciplinares | |
1 | Equivalência | Correspondências, classificações, números, conjuntos, cardinalidade, enumerabilidade, infinito, continuidade, a reta real, semelhança, … |
2 | Ordem | Números, sequências, progressões aritméticas e geométricas, enumerabilidade, crescimento, decrescimento, dízimas periódicas, séries,… |
3 | Medida | Grandezas discretas e contínuas, padrões, comprimentos, áreas, volumes, sistemas de unidades,… |
4 | Aproximação | Estimativas, cálculo mental, números irracionais, médias, desvios, ordens de grandeza, notação científica,… |
5 | Proporcionalidade | Frações, razões, proporções, grandezas proporcionais, semelhança, trigonometria, linearidade, funções do 1º e do 2º graus, mapas e escalas,… |
6 | Interdependência | Funções, gráficos, variação, funções polinomiais, exponenciais e logarítmicas, composição de funções,… |
7 | Invariância | Regularidades, sequências, classificações, geometria, poliedros, padrões, periodicidade, … |
8 | Variação | Constância, variação, aproximação de variáveis por constantes, crescimento, decrescimento, taxas, tipos de crescimento e decrescimento, taxas das taxas,… |
9 | Demonstração | Argumentação, lógica, dedução, premissas, conclusão, tautologias, paradoxos, teoremas,… |
10 | Aleatoriedade | Contagem indireta, combinatória, determinismo, acaso, probabilidade, estatística, binômio de Newton, curva normal, média, desvio padrão,… |
11 | Representação | Linguagem matemática, formas, construções, medidas, simetria, semelhança, posições relativas, mapas, … |
12 | Problematização | Linguagem matemática, linguagem natural, equações, inequações, sistemas, modelagem, otimização,… |
*****23/03/2016
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